sábado, 15 de outubro de 2016

Mar

O mar não me diz nada.
Deveria me falar?
Não entro nas ondas
E nem me deixo arrastar.

Olha-lo não me traz paz
Não me sensibiliza,
À praia não me traz,
A minha vida não energiza.

Sem seios,
Devaneios,
Rodeios,
Anseios.

As ondas que vem,
As ondas que vão,
Nada me dizem,
Me resta solidão.

Onde falta coração,
Sobra labor.
Se falta sensação,
Não há amor.

Ao menos o som
Mostra-se amável
Confesso que é bom,
Me soa agradável.

Respeito o mar,
Seus marujos,
Iemanjá;
Ainda que sujo.

Talvez seja velhice,
Essa falta de emoção.
Busco a mesmice,
A falta de ação.

Me deixe não gostar.
Não fique pasmo!
Pois mesmo do mar
Vem o marasmo...

sábado, 10 de setembro de 2016

Amarelo

Se não tiver controle, você pode viciar e desperdiçar muito tempo até conseguir voltar.
Se não puder utilizar, você pode fazer escolhas muito precipitadas, erradas e ter condutas absurdas que ninguém terá coragem de apoiar.
Se você souber usar, você pode conseguir se equilibrar e, porque não, se salvar.

É energia. É força. Faz parte do equilíbrio.

Energia vital, que se produz, compartilha, desperdiça, multiplica e elimina.

Somos a usina de nós mesmos.

Vez ou outra acontecem desastres que impõem a necessidade de isolamento. Porém, controlado, condicionado à vida de animal social.

Quando se perde essa socialidade, se perde o sentido. Vira-se bicho abaixo e acima da linha do pecado. Aumenta-se a voltagem, os riscos, entra-se em rota de autodestruição.

Em algum momento, por recomendação médica, conselhos de amigos, pressão da família, amor, fé ou xirilubaiê é possível acionar um modo de segurança, capaz de desarmar a bomba.

Mas nem sempre se encontra ajuda para ativar o modo de segurança e a bomba explode.

Às vezes em silêncio, outras aos tiros, algumas do alto e umas do fundo do mar.

E assim a vida se vai. A energia se dissipa. E ninguém mais sabe com certeza o que acontecerá. Talvez só Deus e os ateus.

Uma estatística silenciosa, antecedida por uma vida tenebrosa e resultante de uma morte indecorosa.

Mulheres, vocês não sabem a força que têm. Ou sabem, mas preferem se fazer rogar.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Desclassificação

É estranho ganhar e não levar. Fazer parte e não poder participar. Olhar e não poder tocar. A insensatez da contradição deixa na boca um gosto esquisito, de sentimento de incompletude, como a fome. 

Às vezes, parece ser mais justo nunca ter a oportunidade de chegar tão perto para jamais ter que lamentar o que deixou de acessar.

Por alguns momentos, não raro longos, a sensação é a de que o melhor é nunca chegar. Viver sem oportunidades. Nunca projetar. Ou então, perder por própria incapacidade, com reconhecimento da automediocridade. Ter a paz de espírito de não ter sido capaz.

O problema é quando não se está claro o porquê não venceu. Quando pedalar vira crime de responsabilidade e quando se treina muito para ser roubado.

Perturbador.

sábado, 16 de julho de 2016

Nos deixem sonhar

Aos 26 anos, não se é tão jovem quanto se imagina ser e nem tão adulto quanto se parece ser. 

Mas na essência, ainda me imagino jovem como há uns 6 anos. Inclusive, politicamente.

Desde 2010, tenho me alinhado politicamente às ideologias de partidos que comumente são rotulados de "extrema esquerda". Tudo bem, sou canhoto, isso explica em parte minha inclinação para a esquerda. Mas mais do que isso, eu ainda sou jovem.

Quando se é jovem, a cabeça pensa para frente, com os olhos no futuro. E quando um jovem pensa em futuro, ele pensa com liberdade, projetando sonhos, ideais e utopias. Ou ao menos assim deveria sempre ser.

O jovem não pode ter compromisso com a ordem comum das coisas. Não tem patrimônio e privilégios a proteger e, por isso, politicamente, tem liberdade para se aliar com os ideais de partidos que não são conservadores e não estão comprometidos com a manutenção do status atual das coisas. Ser jovem é olhar, com esperanças, para o longo futuro que tem pela frente.

Me arrisco a dizer que uma sociedade que sufoca os sonhos, ideais e utopias de sua juventude não tem futuro. O futuro de longo prazo é construído pela juventude e não pela atual geração adulta, que só consegue ver o futuro até onde a neblina de preocupações deixa ver. O jovem é imprudente, ousado, consegue enxergar além, embora não saiba ao certo distinguir o que seja futuro do que seja fantasia. Mas é assim que deve ser. A juventude precisa sonhar, precisa acreditar em teorias incertas.

E se a "extrema esquerda" tiver errada? Ela terá errado como todos os grandes partidos que se revezam no Poder têm errado. Os erros se sucedem porque os mesmos partidos e ideologias se revezam ao invés de se sucederem. Nunca saberemos se a esquerda está errada se nunca a deixarmos governar. Ah, não me venha com essa de que PT era governo de esquerda, porque no dia que Lula indicou Henrique Meirelles para o Banco Central em seu primeiro mandato, ele deixou bem claro qual era a política econômica do PT.

Quando o jovem defende socialismo, ele não defende o socialismo de Stalin, de Fidel... A atual juventude não viveu esse socialismo. Ela defende o socialismo que acredita ser possível e não o socialismo que não assistiu. Essa é a dificuldade que a geração adulta tem de entender como ainda se pode acreditar em socialismo. Eles não conseguem ver o socialismo além do socialismo que viram acontecer, perderam a capacidade de sonhar, idealizar.

Uma hora, todos nós, paramos um pouco de acreditar nos sonhos e em ideologias. Contudo, não podemos impedir as pessoas, sobretudo os jovens, de continuar sonhando e acreditando.

Talvez em mais alguns anos eu deixe de ser um jovem no coração e me torne um liberal, daqueles que defende a confiança do "mercado", a necessidade de privatizar os serviços essenciais. Porém, nesse dia, se eu esquecer, me lembre de não impedir ninguém mais jovem do que eu de sonhar, mesmo naquilo que pareça sem qualquer sentido.

Nunca me esqueci do dia que eu estava fazendo a mão um fichamento avaliativo sobre um texto de umas 150 páginas e ouvi, sentado na mesa da copa, sem poder parar para ver a TV que estava na sala, o discurso mais inspirador que um jovem da minha idade poderia ouvir. Nesse dia, fiquei com lágrimas nos olhos e continuei meu fichamento com a inspiração de que aquele sofrimento não era mais forte do que meu poder de sonhar.


domingo, 26 de junho de 2016

Vida ou morte

A morte é a fronteira final. Aquela que separa nosso mundo relativamente previsível de um mundo totalmente desconhecido, do qual tudo que se conhece são crenças, incertezas e probabilidades. 

Não saber com certeza o que há do lado de lá talvez explique o medo que todos, de alguma forma, têm de morrer. Apesar de não facilmente assumido, talvez esse seja o maior medo de todos nós, aquele nos faz diariamente adotar medidas que, mesmo sem gostar, se fazem necessárias para a proteção de nossas frágeis vidas. Esse medo é força motriz, nos faz viver com cuidados, desenvolver um senso de autopreservação em meio aos perigos que nos cercam.

E quando não se tem medo de morrer?

Se vive com mais liberdade e sem muito senso de preservação de si mesmo. Se vive com desprendimento e com menos medos. Se vive sem senso de humanidade.

Todo animal traz em si como instinto mais agudo o instinto de sobrevivência, não necessariamente por entender o que sentido do que representa a morte. No entanto, quando um homem, deliberadamente, resolve renunciar ao medo da morte, ele consequentemente, torna o seu instinto de sobrevivência um instinto secundário, abaixo de outros como, por exemplo, o instinto de reprodução da espécie.

Um homem sem medo da morte não tem muito amor próprio e é um passageiro vagante por entre plataformas desertas da madrugada, fumando pacientemente um cigarro, enquanto não passa o trem da morte.

Um homem sem medo da morte leva uma vida "mercenária", daquelas que só se justifica enquanto tiver algo a oferecer de bom. Mas não se engane! Quem leva uma vida "mercenária" não quer morrer "de graça", não atravessa sinal verde no centro da cidade. Para essas pessoas a vida é como um jogo, no qual enquanto se tem fichas é preciso continuar jogando até que elas definitivamente se encerrem.  E para elas, o fim das fichas não é um problema. Não ter medo de morrer é não tê-la como uma preocupação e, não necessariamente, querê-la como opção.

O pior inimigo é aquele que não tem medo da morte. É frio.

O pior criminoso é aquele que não tem medo da morte. É capaz de amarrar uma bomba na cintura ou de sair praticando roubos por aí com uma arma na cintura sem qualquer medo de morrer ou peso de consciência por matar inocentes. É por isso que a luta armada contra o terrorismo é quase uma fantasia. Quem não tem medo de morrer, não tem pudor em matar. Como lutar contra quem não tem medo de morrer? Oferecendo o risco de morte?  É uma questão psicológica, mental. A guerra precisa ser psicológica, é preciso penetrar nas mentes, na cultura e na educação. Por isso é tão difícil, sobretudo, em uma realidade cultural e histórica tão permeada por guerras.

Muito tempo atrás, vi uma entrevista na qual um menino do tráfico de uns 10 anos dizia não ter medo de morrer e falava com segurança que, se ele morresse, o tráfico o substituiria por alguém "pior do que ele" ("pior" no sentido de ainda mais cruel). Seria a guerra armada contra o tráfico nas favelas também uma fantasia? Os menores que estão desde cedo convivendo com o crime, em geral, são mais frios do que os adultos, mais dispostos a matar e com menos medo de morrer (têm menos a perder, sendo que perder a vida não é uma preocupação), talvez até pela falta de um amadurecimento que já os tenha permitido entender o que significa a morte.

Oferecer a morte a quem não tem medo de morrer não é a solução. Por isso defendo uma cruzada de educação, de formação cultural e religiosa, bem como de dignidade humana, em resposta ao tráfico. É preciso "sequestrar" as mentes dos jovens que se alistam para o exército do tráfico. É preciso dar sentido a essas vidas, a ponto de se criar um medo em perdê-las - o medo de morrer. Estamos longe de conseguir essa proeza, o que torna ainda mais insana e sem sentido a luta armada contra os suicidas do tráfico e do fundamentalismo religioso/político.

Com quem não teme a morte, a única forma de vencer é preenchendo o mosaico da vida, é despertando na vida tanto sentido que faça a morte parecer uma indesejada visitante.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Praça de Guerra

Diga-me o que tu escolhes e te direi quem és. Eu acredito em Deus, sabe? Talvez até o dia que a ciência consiga explicar porque o "Big Bang" só foi capaz de criar racionalidade na espécie humana entre trocentas espécies vivas; até lá, acreditar que, entre tantas espécies criadas, as reações fisioquímicas da grande explosão só privilegiaram a nossa espécie, com todo respeito, me soa tão insano ou sem sentido quanto acreditar em Deus. Então, se é pra escolher em qual "fantasia" acreditar, prefiro acreditar em Deus mesmo.

Mas não é de Deus que quero falar não. Quero falar de escolhas. Mas por que falei de Deus? Porque acredito que a ampla liberdade de escolha foi o maior dom dado por Deus à espécie humana, capaz de levar o homem ao sucesso ou à perdição. 

A vida humana é mágica justamente por causa desse poder de escolhas. São elas que tornam a vida tão imprevisível. Viver é um constante escolher; até respirar se pode escolher. Só não se escolhe nascer ou morrer, sendo que, nesse último caso, a escolha feita por um terceiro pode fazê-lo salvar sua vida antes mesmo que você consiga por fim a ela.

Eu acredito em vida de três esquinas. Tipo o centro daquela cidade horrorosa chamada Belo Horizonte. Nunca existem somente duas escolhas, na minha opinião. Sabe o "sim" e o "não"? Eu também acredito no "são", que, coincidentemente, remete ao verbo "ser". Acredito em Deus e na ciência; em coisas inexplicáveis à ciência pode haver Deus, assim como que pode haver ciência na religião. Acredito que entre os extremos tem sempre o meio termo que alia os dois, como é o ser humano em relação ao "bem" e ao "mal".

Mas essa terceira esquina é como viajar para Hogwarts pela plataforma 9 3/4, aquela que só os bruxos conseguiam ver por dentro de uma pilastra de concreto. Às vezes, é preciso ser míope na vida, pois só assim conseguimos ver o que foge ao olhar comum e ver a terceira esquina. Escolhas intermediárias, muitas vezes, são mais do que ficar em cima do muro, são a picareta para implodir o muro que nos separa de resultados e de nós mesmos.

O mundo pode ser muito mais legal com três opções. Porém, é preciso cuidado. Assim como a velha Belo Horizonte, quando se escolhe uma das esquinas e penetra profundamente por ela, desfazer a escolha e retornar à encruzilhada inicial de decisão nem sempre é fácil. Na vida, cada quadra percorrida envolve cruzar por mais um cruzamento de três esquinas, sendo que essas esquinas não são facilmente identificáveis e é difícil se saber de qual rua se partiu inicialmente. 

Escolher é um constante ir em frente, sendo que desfazer uma escolha já traz em si uma outra escolha. Nunca é um simples voltar atrás. Cada esquina traz em si uma chave de combinações possíveis, envolve uma análise combinatória. Lembra? Pois é. É difícil se saber para onde vai e mais difícil ainda conseguir voltar ao exato status anterior à medida que levamos à frente nossas escolhas cruzando por novas encruzilhadas decisórias.

Contudo, uma é a certeza, qual seja, a de que, aconteça o que acontecer, você colhe os resultados do que escolheu e é fruto de suas próprias escolhas. Se Deus existe, como acredito, esse foi o maior dom deixado ao homem, um dom que não assegura que seremos santos, mas que nos garante força criativa. Se você acredita só no "Big Bang", sem Deus, que sorte incrível essa que só nossa espécie teve após a explosão.

Viver às vezes envolve virar esquinas "cegas", aquelas de muro alto que viramos sem conseguir ver o que está do lado de lá. Entretanto, nessas horas, é preciso respirar fundo e virar, e seja o que tiver que ser.

domingo, 15 de maio de 2016

Sonho

De novo?! Sim! Hoje sim, hoje sim! Todo domingo agora é assim, dia de "coluna" no blog. Semana agitada esta que acabou, derrubaram nossa presidente, tiraram o povo do poder. Era sobre isso que eu já ia escrevendo até que, ao ouvir as músicas que terminei de baixar, ouço Andrea Bocelli cantando isso aqui. Aí lembrei do milagre de segunda-feira dia 02/05/2016: Leicester City campeão. Todos os comentaristas, sites esportivos e demais profissionais do futebol já teceram longas linhas sobre o milagre de Leicester, por que não eu?

Quando penso em Leicester campeão, me sinto orgulhoso, sem nunca ter ido em Leicester, sem jamais conhecer alguém que um dia lá esteve. Quando começou nos fins de 2015 o campeonato nacional de futebol mais valioso do planeta Terra, ninguém, talvez só o mais bêbado dos ingleses, seria capaz de apostar que o nanico Leicester City FC, que nunca antes conquistara um título de expressão na Inglaterra e que brigara para não ser rebaixado no último campeonato, poderia escandalizar o mundo e vencer a tradicional Premier League.

Durante todo o campeonato, enquanto o Leicester teimava em brigar pelas primeiras posições, o mundo esportivo tratava com desdém as chances do clube ser campeão, afinal, o que poderia fazer o pequenino Leicester contra clubes tão tradicionais, campeões e ricos?

Mas foram chegando as rodadas finais, o pequeno clube inglês foi resistindo à força dos clubes mais ricos do mundo e atrasando o relógio da carruagem da cinderela, fazendo o mundo começar a suspeitar que o conto de fadas poderia ser uma história real. E assim foi rodada a rodada, com cada vez mais torcedores ao redor do mundo torcendo pelo sucesso do pequeno inglesinho frente à artilharia pesada dos multicampeões times da terra da rainha, até a inesquecível segunda-feira dia 02/05/2016, quando o Leicester sagrou-se campeão.

A história do Leicester é um conto de fadas do futebol, no qual um time formado por jogadores baratos rejeitados por grandes clubes, muitos mais acostumados em jogar as divisões secundárias do futebol inglês do que a primeira divisão, conseguiu sagrar-se campeão da liga nacional mais cara do planeta. É a história de um treinador italiano que nunca havia conquistado um grande título de verdade, que foi chutado em sua última experiência profissional e que apostou pizzas com seus jogadores em caso de vitórias durante a temporada, vindo agora, no fim da carreira, a ganhar respeito.

O milagre de Leicester é um pouco do milagre de nós mesmos, da gente comum, que precisa ter coragem para todos os dias disputar espaço com aqueles que são mais privilegiados financeiramente e intelectualmente, que precisa trabalhar firme para ter uma chance de sonhar, que precisa saber resistir nos momentos críticos que indicam não ser possível prosseguir. O sonho de Leicester representa aquele sonho que uma pessoa simples acha ousado até de sonhar e que, quando acontece, não se consegue nem acreditar.

Em um futebol moderno de cifras milionárias, Leicester representa a magia do esporte, a chama que não se apaga no coração dos amantes do esporte e da vida.

Andrea Bocelli prometeu ao seu amigo Claudio Ranieri, técnico italiano do Leicester, que cantaria no último jogo do time em casa, caso ocorresse o improvável título; e cumpriu. Em uma cena de arrepiar, Bocelli, que descobri ser cego, cantou para um estádio cheio de pessoas que mal acreditavam que o sonho tornou-se realidade. Bocelli, um cego, que carrega na voz o canto daqueles que fizeram e fazem, diariamente, aquilo que a lógica diz não ser possível, fechou de modo triunfante esse sonho da vida real. Obrigado, Leicester!


Me arrisco a dizer que até os céus pararam para contemplar esse espetáculo.

domingo, 8 de maio de 2016

Vida

Hoje é, oficialmente, dia das mães. Dia de celebração da vida, em seu duplo sentido. Pôr um ser no mundo, seja como pai ou mãe, representa celebrar uma vida que nasce e uma vida que renasce, daí o duplo sentido mencionado por mim.

Ser responsável por uma vida muda o modo de vermos nossas próprias vidas. Não precisa ser pai ou mãe para saber disso; basta, guardadas as devidas proporções, experimentar viver a sensação de ser responsável por cuidar de um ser que depende de você, como um animal de estimação ou uma planta. Aliás, atualmente, cuido de uma planta na varanda de meu quarto, uma planta que me seduz a cada semana com novos ramos verdinhos, que crescem fortes, bonitos, como se em agradecimento aos meus cuidados.

Poucas coisas podem ser tão enriquecedoras em nossas vidas como ter uma vida sob nossa dependência. Cuidar de uma vida valoriza nossa própria existência, nos torna importantes e, de alguma forma, mais preocupados em cuidarmos de nós mesmos.

Mas não se engane! Cuidar de uma vida também representa uma parcela de renúncia de si mesmo, abrir mão de parte de nossa individualidade, abrir mão de tempo (pouco ou muito), de momentos em que se desejava estar a fazer outra coisa, de oportunidades e por aí vai. Cuidar de uma vida dá trabalho, o qual pode ser recompensado ou não, a depender da visão de nós mesmos sobre a vida.

Dentro dessa lógica, escolher ter uma vida para cuidar mostra-se algo cada vez mais controvertido. Não é mistério para ninguém que vivemos em uma sociedade individualista, na qual nossos desejos e metas pessoais se sobrepõem, na maioria das vezes, à vida em sociedade. Nesse sentido, é cada vez mais comum vermos casais que optam por, primeiro, viverem anos "livres" de filhos para curtirem a vida a dois e alcançarem mais facilmente suas metas profissionais para, depois, quando houver tempo, terem filhos. 

Acontece, no entanto, que nem sempre o tempo passa e alcançamos nossas metas pessoais e então, quando ter filhos passa a não influir mais no insucesso pessoal alcançado, se decide tê-los. O problema é que, mais velhos e desgastados pela vida e por suas preocupações, nem sempre estamos no melhor momento de nós mesmos para se dedicar à vida de outro ser, surgindo dificuldades, às vezes, até para reunir condições físicas para brincar com uma criança e gastar energia com ela.

Decidir não ter filhos, cada vez mais, se tornou uma demonstração de individualismo, de garantia de mais de nós mesmos para nós e de menos de nós mesmos para os outros, ainda que nascidos de nós. Os valores propagados pela sociedade contemporânea indicam que a maternidade e a paternidade são obstáculos para nosso crescimento pessoal, de forma que devem ser evitados ou retardados ao máximo; quando na realidade, dentro daquela ótica de dupla celebração da vida, a maternidade/paternidade representa um renascimento de nossas próprias vidas, um recomeço necessário - de onde se extrai que ter com quem se preocupar além de nós mesmos pode, ao invés de um problema, ser o ingrediente necessário para aumentar nossa sede por conquistar o sucesso pessoal, ser o estopim da bomba.

Por sorte, a maioria dos nascimentos (pelo menos no Brasil) não são planejados, embora a lógica diga que isso é péssimo. Ainda bem que os bebês acontecem. A perpetuação do sentimento de humanidade agradece. A vida ainda respira.

domingo, 1 de maio de 2016

Teoria do recato

Tempos de meias palavras; de cumprimento com mão mole; de necessaire, toilette e estrangeirismo desnecessário; de pratos gourmet; de recato.

Tempos de sofisticação forçada, no qual o que aparenta ser sofisticado ganha respeitabilidade. Ter classe e elegância, de modo geral, é algo contrário à nossa natureza animal. Analogicamente, Adão e Eva eram nus até pecarem, tendo optado voluntariamente pela "civilidade" de sempre usar vestes em detrimento da liberdade da vida nua.

O que explica vestir um terno e uma gravata em um dia infernalmente ensolarado e para trabalhar em algo que exija liberdade de movimento dos membros superiores? Civilidade. Aliás, para que servem as gravatas para além de ornamento? O que explica jantar um prato esteticamente bonito em um restaurante de alto padrão e voltar para casa com fome? Civilidade.

Ter classe se tornou um símbolo de evolução humana, como se quem consegue agir com elegância, consegue controlar seus instintos humanos de liberdade, consegue reprimir aquilo que lhe deixaria mais à vontade, fosse alguém mais desenvolvido. Afinal, não se nasce com "garbo e elegância", com classe, com civilidade; se adquire, se aprende.

É pecado ter classe? De forma alguma, mas é anti-natural não se fazer o que se quer somente porque isso pode ser considerado algo "feio", rude e ser utilizado para criar uma má impressão das pessoas acerca de você. A melhor coisa de "ser" é a liberdade de "ser", de forma que se restringir em prol de "parecer" é um aniquilamento de si mesmo.

Para algumas pessoas, no entanto, a elegância e a classe já estão de tal modo intrínseco no "ser" delas que simplificar significa um regresso, uma desevolução, um andar para trás, uma vez que já não sabem viver se não for com sofisticação, se não for com 15 talheres, mas nenhum dedo, para pegar com as mãos a "galinha" que insiste em escorregar do prato.

Às vezes tenho vontade de falar em público, com pronúncia portuguesa, as palavras estrangeiras que cada vez mais insistimos em utilizar sem necessidade, mas isso soaria estranho. Ainda quero ter coragem de chegar em uma loja que coloca "50% OFF" na vitrine e pedir para ir à "casa de banho" do estabelecimento. Sente como é feio falar "casa de banho" ("banheiro" em português de Portugal) com um brasileiro? Usar uma língua/expressão estrangeira para se comunicar com um povo que não fala aquela língua é algo como dizer que está enxergando as roupas invisíveis do imperador, é uma conduta de quem quer demonstrar classe, elegância, superioridade, sem necessidade.

Veja! Não estou a defender que as pessoas não podem ser elegantes, principalmente se só assim conseguem se sentir bem. Não estou a defender "voto de pobreza" ou que se finja simplicidade. Por outro lado, ninguém é obrigado a preferir champagne ao invés de xixa só porque beber a primeira ao invés da segunda é mais sofisticado. Veja! Não ser sofisticado e não ter classe não é pecado; aliás, me arrisco a dizer, voltando ao exemplo de Adão e Eva, que o pecado está mais na classe do que na falta de classe, afinal, o homem foi feito para a liberdade e, a partir do momento que achou necessário restringir sua liberdade com roupas incompatíveis com a temperatura de onde vive, com vocabulário estrangeiro e etc, boicotou um pouco de si mesmo, de sua divina liberdade.

Interessante que mesmo os mais sofisticados precisam ficar (ainda que parcialmente) nus para realizar suas necessidades básicas como pessoa, inclusive o sexo. Aliás, perder a classe expondo-se ao nu é um encontro com nossa verdadeira natureza, com quem somos a maior parte do tempo e não podemos expor, sendo assim injusta a vergonha que, em geral, sentimos ao expor nossas imperfeições físicas no momento da nudez. Dentro da ótica da civilidade, o sexo é uma deselegância, uma falta de recato, uma perda de autocontrole, de classe - diretamente relacionada com o livre exercício da liberdade humana, aquela que contemos em grande parte do tempo usando roupas, um vocabulário selecionado e com atitudes civilizadas.

Não desconsidero as questões de higiene por trás de alguns hábitos de civilidade. Aliás, civilidade é um mal necessário em muitos momentos, mas parece que cada vez mais a motivação para a civilidade excessiva é o caráter evolutivo, é o demonstrar o quanto somos evoluídos e capazes de aprender hábitos anti-naturais, como andar de salto alto, no caso das mulheres, e usar gravata, no caso dos homens. Quanto mais classe se demonstra, mais superioridade se exterioriza.

De verdade, respeito muito quem tem a inocência de segurar uma coxa de galinha com as mãos, de rir sem razão, de andar mal vestido e encardido, de não falar outra língua sem necessidade e de sair para comer em um restaurante e não voltar com fome para casa após comer pratos esteticamente bonitos.

É nessa inocência, na falta de medo de ser você e fazer o que lhe dá prazer, que mora a liberdade.

domingo, 24 de abril de 2016

Histeria!!!

Tempos de intolerância, nos quais sair às ruas de vermelho pode ser ato de subversão e andar de amarelo é sinal de cidadania.

Baile de favela. Ops. Baile das cores. Vermelho, cor de gente ruim. Amarelo, cor de gente do bem.

Fui trabalhar de vermelho no dia pós-golpe e fui olhado, mais do que quando eu usava vermelho no ano passado. Atualmente, quando me visto de vermelho, me sinto, de certa forma, praticando um ato atentatório, quase um terrorista. Mas me sinto livre e bem comigo mesmo. Sei lá, morenos ficam bem de vermelho.

A democracia não tem cor, ela tem, na realidade, a pluralidade de todas as cores. Mas se vermelho se tornou a cor da democracia, é de vermelho que vou, ainda que não sendo PT ou comunista.

Vivemos tempos de histeria. E não é pelos Beatles.

É preciso gritar histericamente. AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!

Apontar o dedo para "ladrões", "corruptos", "defensores de bandido". Gritar palavras de ordem. Pedir a volta da ditadura ou da monarquia (juro que até hoje não entendi o que pensam as pessoas que levam bandeiras do Brasil Império para manifestações patriotas. Até se fossem bandeiras portuguesas eu entenderia melhor). Como no livro "1984", quem não participa dos "dois minutos de ódio" deve ser olhado como suspeito.

Tempos loucos em que cores podem significar coisas que não passam pela mente; tempos de caça àqueles que pensam diferente; tempos de violência (intelectual, física, espiritual).

Me considero um pouco profeta por causa deste texto, porém ser profeta não costuma ser algo muito bom, principalmente em tempos de histeria coletiva. Gosto da palavra "histeria", parece exprimir caráter mais doentio do que a palavra "loucura", talvez porque muitos "loucos" não são loucos, mas gente histérica é sempre gente histérica.

A corrupção não nasceu em 2003 e tampouco os petistas do governo federal são mais corruptos do que os vereadores, prefeitos, deputados, governadores, todos ladrões, dos mais variados partidos, que temos aos montes por aí. Aliás, tampouco os petistas do governo federal são mais corruptos do que os tucanos do longínquo governo anterior. Inclusive, você já viu um tucano? Coisa mais covarde do mundo escolher uma ave tão linda, original, de cores tão vibrantes, para representar ideias tão conservadoras.

Não acredito muito em manifestações de rua para cobrar alguma coisa em nível federal, justamente porque tenho a sensação que em Brasília as coisas são decididas influenciadas somente, e digo, único e exclusivamente, por motivos políticos, por benesses possíveis de serem auferidas pelos políticos e seus tão estimados familiares. Se lixam se estamos nas ruas, como fizeram na época das "Diretas Já". Manifestações de rua com fins federais não mudam voto de indecisos e nem geram leis; no máximo, dão voz à quem quer gritar e não quer esperar até as eleições.

Mas manifestações contra problemas locais podem mudar muita coisa, visto, por exemplo, que, quando pressionados por câmaras cheias de gente, os vereadores de várias cidades "ficam com medo" e votam contra seus aumentos salariais que já estavam combinados nos bastidores políticos. Contraditoriamente, no entanto, raramente vamos às ruas contra problemas locais. Vai entender.

Acredito que serve mais à "luta" qualificar gente comum, que veio do povo, para ocupar cargos com poderes decisórios, seja no Judiciário, em escolas, na área médica e por aí vai. É como o golpe de 2016; ele não é feito pelas pessoas de amarelo nas ruas, mas por pessoas de aparência asséptica, cheias de ideologia, com poder para fazer o golpe independente e contrariamente da vontade da maioria. Dentro dessa lógica, por exemplo, as cotas são uma puta estratégia de revolução, de tentativa de mudar o país pelas instituições, criando oportunidade de colocar gente "de cor", que sabe o que é a vida fora do ar condicionado, em cadeiras que hoje, infelizmente, são ocupadas quase que na totalidade por quem não representa os interesses da maioria da população e tem alergia ao povo.

Eu realmente me assusto com a cisma que pessoas histéricas têm com o governo PT, com o MST, com os sindicatos. As pessoas não conhecem como funciona reforma agrária e, mesmo assim, se sentem no direito de dizer que MST é cheio de gente à toa, que tem preguiça de trabalhar e quer terra de graça para vender. No domingo passado, quando Cunha comandava o culto do golpe, encontrei uma vizinha no elevador que me disse que tinham saído vários ônibus do ES rumo à Brasília para acompanhar a votação e que "devia ser tudo gente do MST". Será que patriotas não viajam de ônibus? Deve ser mesmo coisa de esquerda, de gente pobre, esse negócio de viajar de ônibus. Sinceramente, não consigo nem argumentar com gente assim, prefiro ficar mudo e deixá-la pensar que me convenceu, ou não, enquanto torço para descer logo no meu andar.

Tem gente que pede, urgentemente, que "libertem o Brasil"; tem gente que diz que "não podemos deixar o Brasil virar uma Venezuela". Sempre me espanto com essas comparações. Você já foi ou conhece alguém que vive/viveu na Venezuela? O que você conhece da Venezuela além do que relatos? E da Coreia do Norte? Tenho como filosofia de vida que não dá para emitir opinião bem fundamentada sobre lugares e gente que não conhecemos. A Venezuela pode ser uma merda, ou não. Macri, o novo presidente argentino, por exemplo, tá fazendo um monte de reformas liberais, que podem não dar certo, e dizem que o Brasil precisa virar uma Argentina. Oi? Ninguém sabe o resultado das reformas feitas por ele, até porque não houve tempo para resultados seguros, e querem nos comparar à Argentina como modelo. Seja com Venezuela ou com Argentina, não dá. O PT quer implantar uma ditadura de esquerda no Brasil, com as maiores taxas de juros do mundo e permitindo que bancos tenham lucros bilionários? Realmente, se o PT tá querendo fazer isso aqui virar uma ditadura de esquerda usando desses métodos tão capitalistas, merece mesmo ser tirado do poder por incompetência.

Em tempos de histeria popular, Hitler fez sabões de judeu e os alemães apoiaram ou estavam tão cegos de histeria que nem perceberam.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Não

Quando eu disse "sim", tudo o que eu queria era ter uma oportunidade de tentar. Quando eu disse "sim", tudo o que eu queria era corrigir um erro com anos de atraso, era admitir que eu deveria antes ter seguido a sensação que senti no primeiro dia.

Quando eu disse "sim", tudo o que eu queria era ser um sujeito comum, daqueles que se relacionam normalmente, trocam sentimentos ao invés de apenas dar. Quando eu disse "sim", tudo o que eu queria era mostrar que um negro suado pode conquistar.

Quando eu disse "sim", tudo o que eu queria era adoçar a vida e ter momentos para só discutir. Quando eu disse "sim", tudo o que eu queria era poder ter com quem sonhar.

Quando eu disse "sim", tudo o que eu queria era ter direito a ouvir um "não". Quando eu disse "sim", tudo o que eu queria era ter motivos para mudar e seguir.

Quando eu disse "sim", tudo o que consegui foi mais uma decepção, daquelas que não se conhece a razão.

No fim, ao que parece, é melhor só se dizer "não", acalmar os espíritos, se pedir perdão e clamar por mais razão. Gente branca não tem coração.

 Já são duas da manhã.

domingo, 10 de abril de 2016

7x1

Normalidade nem sempre foi o forte.
Se torna parâmetro para quem o imponderável é sofrimento.

Cenas lamentáveis.
O aperto não suporta a moleza.
O deslumbramento quando se mistura com a insegurança não resulta em naturalidade.
Falsa vitória. Palavras ao vento. Constrangimento.

Ter firmeza nas palavras, afasta.
Ter sinceridade nos olhos, assusta.
Encontrar o que se busca, congela.
Deixa passar.

Entre X e S2, restam as meninas de plantão,
A rapidez da violência sem consciência,
As fotos de ego,
A busca pelo desconhecido.

Vez ou outra um acerto.
O imponderável parece trazer sorte.
Mas quando o sono é mais importante,
O sonho se desfaz na espera silenciosa.

O corpo se marca, como em guerra.
Acende um alerta de azar.
Que siga a diversão.
Tempo é dinheiro.

Para ser indigno basta parecer.
É bom ter alguém para se dispensar.
Oportunidade? Só se for apresentado pelo imponderável
E depois, contraditoriamente, seguir aquela ABNT.

Seguem as fotos, sem cartas,
Mas o que não se vê o coração sente melhor.
Um retorno ao passado para abrir os olhos.
Uma aterrissagem meio atabalhoada.

O imponderável se faz presente
Com o irmão da má compreensão.
Decepção gratuita em abraço de urso.
Barbas de molho.

Dois é bom.

Suor é lágrimas,
Derrama o imponderável,
A desistência inconvicta.
A descontinuação da certeza.

O que virá?
Exige coragem ou dedicação.
Intervalo da vida.
Dormir pouco ou escovar os dentes.

Todos já foram goleados,
Todos menos alguns.
Afinal nem todos são merecedores
Quando se escolhe a quem dar oportunidades.

Quando o fundo do poço tem porão,
Chegar ao fundo é quase um pedido.
A esperança está no fundo,
Onde mais do mesmo não é solução.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Tonight

Tiros na porta. Parecem tiros de calibre 32. Não tenho medo de balas. Sou peito de aço. Tá pra existir cabra mais macho do que eu. E tenho dito, é compromisso registrado. Se tiver, mudo meu nome para Maria Chiquita. E quem precisa de sobrenome? Para cartão de visitas, talvez. Mas são tiros de bala.

Silêncio. 

Revólver descarregado. Consegui ouvir o "crack" do tambor vazio. Cheiro de pólvora. Tem alguém do outro lado. Posso ouvir a respiração. É uma mulher. Não vou abrir. De tantas portas que abri, agora é minha vez de fechar. Uma mulher com uma arma descarregada em mãos é mais deprimente que o centro da cidade. Espero que não esteja velha. Ou que esteja e se foda.

Não vou abrir.

Queria sair quando os tiros rompiam o ar. Desviar deles com minha macheza. Agora deve-se estar uma cena deplorável de se admirar. O fundo do poço tem porão. Um dia assim me falaram. Uma hora a munição sempre acaba. O que resta? Só abrir e olhar. Vou abrir nada. Já fiz minha oferta. Não tenho mais o que negociar. Que abrace o que lhe reste. Mas cuidado, o tempo vai passar. E quando se percebe, a oferta que era boa demais não se repete. Efeitos da juventude. Ao final resta a incompletude. Não há reembolso. E nem mais hotéis no Rio.

Não me interessa.

A festa acabou. O tambor esvaziou. Enquanto assisto TV comendo sucrilhos. Vestido só de samba canção. Não me interessa o mundo atrás da porta. Não mais. Quando acabar essa parte chamo a polícia para limpar a sujeira que deve estar lá fora. Cheio de cápsulas de bala deve estar. Telefone mudo não pode chamar.

Aforismo. 

Ou desaforismo. Levo pra casa não. Não existe almoço de graça. Tem que me ajudar a te ajudar. Indiferença. Pior do que ódio. Desprezo. Pior do que desterro. Ficou aberto por anos. Não quis entrar. Agora vem com tiros. Vou ignorar. E não me venha com xurumelas. Arara cuara itumby iara caria mariri cu cri care manhu açu. É índio pra mais de metro.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Devaneio Rodriguiano

Tomava todos os dias o mesmo ônibus urbano que ela, saindo às 11:30 do terminal rodoviário. Sempre a via na fila de espera. Uma jovem de uns 20 anos, morena clara, de cabelos castanhos com tons de loiro. Estimava que ela tivesse uns 1,70 m de altura. Na linguagem popular masculina, ela era uma cavala, uma gostosa de quadris e coxas voluntariosos, de corpo bem torneado e rosto bem desenhado. Ele tinha o costume de dizer que não casaria com uma mulher que não fosse capaz de conseguir segurar no colo. Aquela cavala talvez ele não conseguiria; não por ser gorda (pelo contrário), e sim pela magreza quase aidética dele e pelo corpo bem distribuído que aquela garota ostentava.

Já fazia cerca de um mês que Alves, jovem servidor público de 23 anos, comia aquela jovem com os olhos na fila de espera e no percurso de meia hora até a capital. Via ela descer todos os dias no mesmo ponto de ônibus - um ponto antes daquele em que ele descia para se dirigir à repartição onde trabalhava. Ficava imaginando para onde ela ia todos os dias, se tinha namorado, o que fazia da vida. A musa tinha um ar de garota meiga, sem aquelas nojentices comuns das garotas urbanas. "Veja só! Ela sequer usava fones de ouvido durante as viagens de ônibus!", pensava Alves.

De tanto vê-la diariamente naquele mesmo itinerário ao centro da capital, tinha a inocência de se sentir íntimo da guria. 

"Cabeça vazia, oficina do diabo", já diziam os antigos. 

Determinado dia, Alves, de caso pensado, resolveu sentar-se do lado daquela coisa linda. Já tinha planejado tudo. Iria deixar o ônibus afastar-se alguns minutos do terminal rodoviário e uns 5 minutos depois puxar assunto com tom de naturalidade. Sabia que, em geral, as jovens bonitas sentem-se inseguras ao serem abordadas por desconhecidos. Porém, inocentemente, acreditava que ela já tivesse em algum momento percebido que pegavam todos os dias o mesmo ônibus e que, por isso, se sentisse mais à vontade para conversar.

Pois bem. Sentou-se ao lado da linda moça e alguns minutos depois, Alves lhe disse em baixo tom de voz:

- Reparei que todos os dias pega esse mesmo ônibus, assim como eu. Você trabalha no centro?

Ela respondeu com um "Hã?", franzindo o rosto como quem não tivesse conseguido ouvir o que foi dito, seja pelo barulho do ônibus ou por não estar esperando ser abordada enquanto olhava pela janela a linda Baía de Vitória.

Alves repetiu a oração, que nesse momento já tinha quase um ar de prece. 

Ele esperava por uma resposta curta, de quem não quer assunto com um desconhecido, ou então, uma resposta em tom doce, convidativo a um prolongamento de conversa. Alves já havia tempos antes abordado uma garota que também pegava sempre esse mesmo ônibus. Naquela ocasião, foi respondido com desdém por uma linda italianinha de cabelos negros, que chegou a descer um ponto  antes do habitual para, talvez, se livrar mais rápido da investida de Alves. Esse episódio chateou profundamente o conquistador, que se sentiu equiparado, de alguma forma, a algum tarado maluco. Nunca mais dirigiu qualquer palavra à italianinha (e a recíproca era verdadeira), embora teimassem em pegar todos os dias o mesmo ônibus. 

"Quem sabe hoje será diferente", pensava esperançosamente o magro jovem de pele morena brasileira, 1,75 m, sem grande charme fora da carteira. 

O que se sucedeu foi algo que jamais passaria pelos planos de Alves, nem se ele ficasse pensando por meses em possíveis desfechos. A linda jovem respondeu à pergunta reiterada:

- Não, não. Estagio no centro. Ainda estou fazendo faculdade.

Ele sequer prestou atenção naquela resposta, dada em tom natural, incapaz de demonstrar interesse ou desdém. O que roubou a atenção do "terror das passageiras" foi outro detalhe: a moça tinha língua presa; muito presa, diga-se de passagem.

Alves ficou petrificado diante dessa inesperada situação. Em seus devaneios jamais imaginara que aquela potranca puro sangue falasse como o Cebolinha da Turma da Mônica. "Puta que pariu! Não é possível!" - praguejava ele mentalmente.

Não conseguia algo balbuciar. Tinha vontade de rir, não pelo problema da moça, mas pela surpresa da situação. Seu rosto, contraditoriamente, reagia com outras contrações. Franziu o rosto com ar de menosprezo. A moça aparentemente não percebeu a razão da estranha careta. Somente depois de um longo delay de uns 10 segundos conseguiu algo dizer. Disse qualquer coisa, fez uma pergunta qualquer, impensada, como que automática:

- Legal. Faz faculdade de quê?
- Direito. - respondeu a guria.

E Alves seguiu fazendo perguntas automáticas, sem cantadas, piadas ou outras observações. Falava como em piloto automático. Não conseguia parar de prestar atenção na língua presa da moça. E esse problema cada vez o incomodava mais. Mais. E mais. Porém ele seguia perguntando coisas, sem que ela perguntasse qualquer coisa sobre ele. Parecia um jogo masoquista, no qual ele forçava a garota a ostentar seu problema vocal e assim ganhava mais momentos de angústia com aquela estranha voz.

O incômodo foi crescendo no jovem conquistador. Isso foi lhe causando suor excessivo na testa. O estômago parecia revirar. Mas Alves seguia a perguntar, perguntar e perguntar. E a jovem respondia tudo com naturalidade, sem demonstrar interesse ou desdém. O moreno jovem foi ficando sem ar, como que prestes a explodir. Se branco fosse, estaria vermelho como semente de pau brasil.

Sem mais resistir, Alves, sem se preocupar em dizer algo que fizesse sentido, apenas disse à moça, em meia voz, a enigmática frase:

- Hoje não! Hoje não!

E de súbito levantou-se e deu sinal para descer no próximo ponto, um ponto antes daquele no qual habitualmente a linda moça descia no centro da cidade.

Quando o ônibus abriu as portas, Alves atirou-se para o lado de fora e pôs-se a vomitar na calçada, na frente daquele mundo de gente que ia e vinha. Vomitava a plenos pulmões, como quem estivesse disposto a cuspir tudo o que entrara mal pelos seus ouvidos e não conseguira absorver.

Estava livre.

A moça provavelmente nada entendera e talvez nem quisesse entender. Mas para Alves fora uma vingança pessoal contra as mulheres passageiras. Sentia-se vitorioso. Isso que importava.

No dia seguinte, no outro, no outro e ainda por meses, voltou a encontrar a cavala e a italianinha na mesma fila de espera e no mesmo ônibus. Mas desde então nunca mais dirigira alguma palavra a uma delas ou a qualquer outra mulher dentro de um ônibus, por mais linda que fosse.