sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Tonight

Tiros na porta. Parecem tiros de calibre 32. Não tenho medo de balas. Sou peito de aço. Tá pra existir cabra mais macho do que eu. E tenho dito, é compromisso registrado. Se tiver, mudo meu nome para Maria Chiquita. E quem precisa de sobrenome? Para cartão de visitas, talvez. Mas são tiros de bala.

Silêncio. 

Revólver descarregado. Consegui ouvir o "crack" do tambor vazio. Cheiro de pólvora. Tem alguém do outro lado. Posso ouvir a respiração. É uma mulher. Não vou abrir. De tantas portas que abri, agora é minha vez de fechar. Uma mulher com uma arma descarregada em mãos é mais deprimente que o centro da cidade. Espero que não esteja velha. Ou que esteja e se foda.

Não vou abrir.

Queria sair quando os tiros rompiam o ar. Desviar deles com minha macheza. Agora deve-se estar uma cena deplorável de se admirar. O fundo do poço tem porão. Um dia assim me falaram. Uma hora a munição sempre acaba. O que resta? Só abrir e olhar. Vou abrir nada. Já fiz minha oferta. Não tenho mais o que negociar. Que abrace o que lhe reste. Mas cuidado, o tempo vai passar. E quando se percebe, a oferta que era boa demais não se repete. Efeitos da juventude. Ao final resta a incompletude. Não há reembolso. E nem mais hotéis no Rio.

Não me interessa.

A festa acabou. O tambor esvaziou. Enquanto assisto TV comendo sucrilhos. Vestido só de samba canção. Não me interessa o mundo atrás da porta. Não mais. Quando acabar essa parte chamo a polícia para limpar a sujeira que deve estar lá fora. Cheio de cápsulas de bala deve estar. Telefone mudo não pode chamar.

Aforismo. 

Ou desaforismo. Levo pra casa não. Não existe almoço de graça. Tem que me ajudar a te ajudar. Indiferença. Pior do que ódio. Desprezo. Pior do que desterro. Ficou aberto por anos. Não quis entrar. Agora vem com tiros. Vou ignorar. E não me venha com xurumelas. Arara cuara itumby iara caria mariri cu cri care manhu açu. É índio pra mais de metro.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Devaneio Rodriguiano

Tomava todos os dias o mesmo ônibus urbano que ela, saindo às 11:30 do terminal rodoviário. Sempre a via na fila de espera. Uma jovem de uns 20 anos, morena clara, de cabelos castanhos com tons de loiro. Estimava que ela tivesse uns 1,70 m de altura. Na linguagem popular masculina, ela era uma cavala, uma gostosa de quadris e coxas voluntariosos, de corpo bem torneado e rosto bem desenhado. Ele tinha o costume de dizer que não casaria com uma mulher que não fosse capaz de conseguir segurar no colo. Aquela cavala talvez ele não conseguiria; não por ser gorda (pelo contrário), e sim pela magreza quase aidética dele e pelo corpo bem distribuído que aquela garota ostentava.

Já fazia cerca de um mês que Alves, jovem servidor público de 23 anos, comia aquela jovem com os olhos na fila de espera e no percurso de meia hora até a capital. Via ela descer todos os dias no mesmo ponto de ônibus - um ponto antes daquele em que ele descia para se dirigir à repartição onde trabalhava. Ficava imaginando para onde ela ia todos os dias, se tinha namorado, o que fazia da vida. A musa tinha um ar de garota meiga, sem aquelas nojentices comuns das garotas urbanas. "Veja só! Ela sequer usava fones de ouvido durante as viagens de ônibus!", pensava Alves.

De tanto vê-la diariamente naquele mesmo itinerário ao centro da capital, tinha a inocência de se sentir íntimo da guria. 

"Cabeça vazia, oficina do diabo", já diziam os antigos. 

Determinado dia, Alves, de caso pensado, resolveu sentar-se do lado daquela coisa linda. Já tinha planejado tudo. Iria deixar o ônibus afastar-se alguns minutos do terminal rodoviário e uns 5 minutos depois puxar assunto com tom de naturalidade. Sabia que, em geral, as jovens bonitas sentem-se inseguras ao serem abordadas por desconhecidos. Porém, inocentemente, acreditava que ela já tivesse em algum momento percebido que pegavam todos os dias o mesmo ônibus e que, por isso, se sentisse mais à vontade para conversar.

Pois bem. Sentou-se ao lado da linda moça e alguns minutos depois, Alves lhe disse em baixo tom de voz:

- Reparei que todos os dias pega esse mesmo ônibus, assim como eu. Você trabalha no centro?

Ela respondeu com um "Hã?", franzindo o rosto como quem não tivesse conseguido ouvir o que foi dito, seja pelo barulho do ônibus ou por não estar esperando ser abordada enquanto olhava pela janela a linda Baía de Vitória.

Alves repetiu a oração, que nesse momento já tinha quase um ar de prece. 

Ele esperava por uma resposta curta, de quem não quer assunto com um desconhecido, ou então, uma resposta em tom doce, convidativo a um prolongamento de conversa. Alves já havia tempos antes abordado uma garota que também pegava sempre esse mesmo ônibus. Naquela ocasião, foi respondido com desdém por uma linda italianinha de cabelos negros, que chegou a descer um ponto  antes do habitual para, talvez, se livrar mais rápido da investida de Alves. Esse episódio chateou profundamente o conquistador, que se sentiu equiparado, de alguma forma, a algum tarado maluco. Nunca mais dirigiu qualquer palavra à italianinha (e a recíproca era verdadeira), embora teimassem em pegar todos os dias o mesmo ônibus. 

"Quem sabe hoje será diferente", pensava esperançosamente o magro jovem de pele morena brasileira, 1,75 m, sem grande charme fora da carteira. 

O que se sucedeu foi algo que jamais passaria pelos planos de Alves, nem se ele ficasse pensando por meses em possíveis desfechos. A linda jovem respondeu à pergunta reiterada:

- Não, não. Estagio no centro. Ainda estou fazendo faculdade.

Ele sequer prestou atenção naquela resposta, dada em tom natural, incapaz de demonstrar interesse ou desdém. O que roubou a atenção do "terror das passageiras" foi outro detalhe: a moça tinha língua presa; muito presa, diga-se de passagem.

Alves ficou petrificado diante dessa inesperada situação. Em seus devaneios jamais imaginara que aquela potranca puro sangue falasse como o Cebolinha da Turma da Mônica. "Puta que pariu! Não é possível!" - praguejava ele mentalmente.

Não conseguia algo balbuciar. Tinha vontade de rir, não pelo problema da moça, mas pela surpresa da situação. Seu rosto, contraditoriamente, reagia com outras contrações. Franziu o rosto com ar de menosprezo. A moça aparentemente não percebeu a razão da estranha careta. Somente depois de um longo delay de uns 10 segundos conseguiu algo dizer. Disse qualquer coisa, fez uma pergunta qualquer, impensada, como que automática:

- Legal. Faz faculdade de quê?
- Direito. - respondeu a guria.

E Alves seguiu fazendo perguntas automáticas, sem cantadas, piadas ou outras observações. Falava como em piloto automático. Não conseguia parar de prestar atenção na língua presa da moça. E esse problema cada vez o incomodava mais. Mais. E mais. Porém ele seguia perguntando coisas, sem que ela perguntasse qualquer coisa sobre ele. Parecia um jogo masoquista, no qual ele forçava a garota a ostentar seu problema vocal e assim ganhava mais momentos de angústia com aquela estranha voz.

O incômodo foi crescendo no jovem conquistador. Isso foi lhe causando suor excessivo na testa. O estômago parecia revirar. Mas Alves seguia a perguntar, perguntar e perguntar. E a jovem respondia tudo com naturalidade, sem demonstrar interesse ou desdém. O moreno jovem foi ficando sem ar, como que prestes a explodir. Se branco fosse, estaria vermelho como semente de pau brasil.

Sem mais resistir, Alves, sem se preocupar em dizer algo que fizesse sentido, apenas disse à moça, em meia voz, a enigmática frase:

- Hoje não! Hoje não!

E de súbito levantou-se e deu sinal para descer no próximo ponto, um ponto antes daquele no qual habitualmente a linda moça descia no centro da cidade.

Quando o ônibus abriu as portas, Alves atirou-se para o lado de fora e pôs-se a vomitar na calçada, na frente daquele mundo de gente que ia e vinha. Vomitava a plenos pulmões, como quem estivesse disposto a cuspir tudo o que entrara mal pelos seus ouvidos e não conseguira absorver.

Estava livre.

A moça provavelmente nada entendera e talvez nem quisesse entender. Mas para Alves fora uma vingança pessoal contra as mulheres passageiras. Sentia-se vitorioso. Isso que importava.

No dia seguinte, no outro, no outro e ainda por meses, voltou a encontrar a cavala e a italianinha na mesma fila de espera e no mesmo ônibus. Mas desde então nunca mais dirigira alguma palavra a uma delas ou a qualquer outra mulher dentro de um ônibus, por mais linda que fosse.