sábado, 22 de dezembro de 2012

Cadê o dinheiro?

Poucas coisas dividem tanto a opinião pública atualmente no Brasil como o fato de o país ser sede de uma Copa do Mundo em 2014 e de uma Olimpíadas em 2016.

Aqueles que se opõem à realização desses eventos no país sustentam quase em uníssono que é um desperdício de dinheiro público e que o Brasil, ao invés de assumir gastos bilionários com obras necessárias para ambos eventos esportivos, deveria investir esse dinheiro nas verdadeiras prioridades nacionais: erradicar a pobreza; melhorar a saúde e a educação pública etc. Isso pode parecer bonito e sensato. Mas, sinceramente, me soa algo muito utópico.

A verdade, pelo menos pra mim, é que somos um país rico. Minto, somos um país MUITO RICO. Em outras palavras, somos um país tão rico que seríamos capazes de sediar uma Copa do Mundo todo ano sem vivermos significativos problemas financeiros. Se faltam ensino e saúde de qualidade, por exemplo, não é por falta de dinheiro público, mas por má gestão pública, planejamento mal feito, má divisão e mau uso dos recursos existentes. O dinheiro existe, senhores!

Há servidores públicos de nível médio nesse país que ganham mais do que funcionários pós-graduados da iniciativa privada. Há obras públicas faraônicas realizadas para a prestação de serviços que sequer têm grande demanda. Há órgãos públicos nos quais as poltronas da sala de espera custam mais do que um dia de merenda de uma turma completa na escola pública. Há diárias recebidas por membros dos 3 Poderes em viagem que custam mais do que remédios que faltam diariamente nos hospitais públicos.

Neste país não falta dinheiro! É isso que às vezes me dá vontade de gritar a plenos pulmões pela janela do ônibus. Somos um país rico com mentalidade de país pobre. Tem gente (inocente) que realmente acredita que não sediar uma Copa do Mundo ou uma Olimpíadas assegura dinheiro para ser investido na educação ou na saúde. Esse dinheiro, se não fosse gasto nesses eventos, seria desperdiçado de outra forma. Seria, como de regra, comido pelos corruptos e pelos privilégios daqueles que vivem às custas do Estado e pouco produzem. Pra mim, é ilógico crer que os recursos não gastos com uma Copa e uma Olimpíadas poderiam, contrariando nosso histórico de mau uso de dinheiro público, ter sido empregados para atender demandas sociais. Nesse contexto, na minha visão, quem defende não gastar recursos realizando esses eventos é como o dono de uma propriedade improdutiva há décadas que não aceita tê-la usada para reforma agrária porque ainda pretende fazer uso dela no futuro. Economizar dinheiro não realizando a Copa e as Olimpíadas seria guardar dinheiro público sob a alegação de que queremos fazer com ele o que raramente fazemos.

Sinceramente, prefiro ver estradas, aeroportos, transporte urbano e outros serviços sendo melhorados NA MARRA porque vamos receber o mundo em 2014 e 2016 do que ver esse dinheiro sendo devorado, com sempre, pela falta de gestão dos administradores públicos. Os estádios estão custando caro? Há dinheiro consumido pela corrupção nas obras da Copa e das Olimpíadas? Sim. Outro sim. Serão bilhões investidos para no máximo 3 meses (somando os dois eventos) de pão e circo? Sim. Entretanto, também acredito que nem tudo será só tragédia. Ora, sediar tais eventos na fudida América do Sul vai mudar muito a visão que o mundo tem do Brasil e desse lado do planeta. Vai ter um efeito muito positivo para nossa respeitabilidade internacional. O mundo vai descobrir, enfim, que na América do Sul as pessoas não vivem em meio aos macacos e as anacondas, que nem toda brasileira é mulata, que só existe carnaval uma vez no ano e que aqui há coisas que funcionam tão bem ou até melhor do que na Europa.

Lamento discordar dos que acreditam que uma Copa e uma Olimpíadas são para nós apenas desperdício de dinheiro. Nesse assunto, o "povão alienado" que quer a Copa do Mundo me parece mais correto do que os intelectuais que são contrários a esses eventos. Erra (sonha) quem acredita que não gastar recursos públicos com Copa e Olimpíadas assegura dinheiro para prioridades nacionais. Esse gasto é mixaria para um país como o nosso. Desculpe, mas o Brasil não é pobre e não precisa economizar bilhões para conseguir atender demandas sociais. O dinheiro existe, me arrisco a dizer que sempre existiu. Se falta saúde, educação, segurança etc é porque falta gestão; bom uso dos recursos existentes. Que venha 2014 e 2016.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

PARE

OLHE



ESCUTE

Dias de Malásia.
Vai.
Vai pra cima.
Não deixe de ir.
O tempo é escasso e a inércia tira a sensibilidade.
Se suje. Se enlambuze. Só não fique limpo.
Jogue-se. Se precisar rasteje pelas trincheiras. Só não fique parado.
Encare. Finja. Seja duro mesmo na fraqueza.
Decisões precisam ser rápidas e aparentarem ser corretas, ainda que erradas.
Ninguém nota, mas todos fingem se importar.
As mãos precisam ser mais rápidas do que hábeis.
Produção em larga escala.
Se hesitar vai atrapalhar. Se pensar demais vai estragar.
Faça. Como eles não fazem. Do seu jeito.
Rompa. Chute a porta. Entre sem bater.
Faça acontecer.
Só não fique esperando pra ver.
Não pague. Pule.
Tome tiro, mas não tome bomba.
Vença mesmo perdendo.
Perca para aprender a vencer.
Mas vença.
Tudo em meia hora ou nada.
Tudo.

SIGA

"Se não puder voar, corra. Se não puder correr, ande. Se não puder andar, rasteje, mas continue em frente de qualquer jeito." (Martin Luther King. Jr.)

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Fala que eu te escuto

- Não existe almoço de graça. (mundo)
- O choro é livre.
- Posso pegar água aqui? (trabalhador)
- Não quero me meter nisso.
- Entre a legalidade e a justiça, deve prevalecer a justiça. (jurista do futebol)
- Amanhã é feriado? Sério?!
- Você vem? (atriz)
- Eu sinceramente ainda não tenho uma posição formada sobre isso.
- Ficou satisfeito com o resultado das eleições? (cidadão)
- Se eu der sorte, antes de chegar em casa eu ainda vejo um acidente.
- Você está acostumado com analogias mal feitas. (teimoso)
- Se forme e depois escreva.
- Você é o Fernando? (clérigo)
- Desconheço. Não fui eu quem fiz não.
- Ficou muito boa! (senhor)
- Me chamo Malcon. Cilenio Malcon.
- E a bonitinha? (Ronaldo)
- Não captou.
- Desafiador. (Kyotto)
- Claro! Negar água a você seria até pecado.
- Os alunos do Darwin não devem comer no RU. (socialista)
- Não penso em boicotar.
- No mundo de hoje todo mundo quer dar uma notícia antes dos outros. (papagaio ético)
- Nem o Jornal Nacional usou essa pesquisa.
- É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar. (facebook)
- E a pipa do vovô?
- London, London. (Caetano)
- Não sei que horas vou sair daqui.

"A grande utopia do homem é ser ouvido." (Nelson Rodrigues em um texto que li, mas não lembro o nome)

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Caronte

Trabalhar com a morte lhe fazia bem. Nunca antes havia sentido tanto prazer em um ofício, e olha que ele teve vários antes de encontrá-lo. A morte completava a sua vida.

Todos os dias era a mesma coisa. Ele passava os dias dirigindo o carro do IML sem rumo, atendendo chamados para buscar corpos sem vidas. Era como um táxi da morte. Alguns passageiros furados de balas, outros em estado de decomposição... As possibilidades eram muitas. Sentia sua vida se renovar a cada nova viagem para buscar um corpo. Era a mesma sensação há mais de um quarto de século. Sempre o mesmo frio na barriga, a mesma ansiedade. Como um juvenil em início de carreira.

Não se importava com a aparência com que tinham os mortos quando eram buscados. Nem com o cheiro. Era indiferente se pessoas choravam, gritavam, se curiosos se aglutinavam como abutres em volta e se os flashes da imprensa brilhavam como olhos apaixonados. Não deixava que ninguém atrapalhasse aquele momento seu com a morte.

Gostava de poder olhar nos olhos de seus passageiros. Vê-los com o olhar perdido de quem busca encontrar a eternidade no horizonte. Não tinha medo de fitá-los. Ao contrário. Era no olhar dos mortos que via o que o ser humano tem de mais puro. Pareciam recém-nascidos tendo os primeiros contatos com a vida. Via a fragilidade daqueles que não tinham ninguém mais por eles e pareciam clamar por misericórdia. Via a fraqueza daqueles que durante toda a vida se portaram como valentes. Alguns pareciam pedir perdão. A esses, dava seu perdão pelos males, como se fosse religiosamente investido para tal fim. Outros pareciam pedir que ele desse um último recado a alguém, que dissesse por eles algo que não foi dito por falta de tempo, medo ou coragem. A esses prometia em silêncio que cumpriria o pedido, mesmo sabendo que não o faria. Não queria que eles fossem embora com alguma preocupação ou arrependimento pendente. Sentia-se sempre o último confidente deles; a última pessoa vista por eles. Era uma honra, por certo. Daí nunca ter ido trabalhar sem que estivesse vestido de modo respeitoso e com o bigode aparado. Ele vivia para os mortos.

Sempre fechava os olhos dos mortos antes de colocá-los para dormir no carro preto. Quando os colocava dentro do saco, sentia-se como um pai colocando o filho para dormir, principalmente quando eram as jovens vítimas do tráfico. Sabia que muitos daqueles jovens nunca tiveram pais ou uma família que lhes tivesse dado carinho. Fazia questão de garantir que ao menos na hora da morte se sentissem amados. Fazia sempre uma prece pelos indigentes. Não ria ou ouvia música enquanto transportava os mortos. Pouco conversava com seu colega de trabalho que lhe ajudava diariamente. Teve vários ao longo da vida. Diziam na repartição que ele era mais frio que os corpos que transportava. O que não sabiam era que a morte o aquecia mais a cada dia, o deixava mais vivo. Era como se aqueles corpos indefesos e frágeis lhe dessem força.

Um dia, no entanto, o caronte morreu. E ninguém passou para buscá-lo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

REC

Há poucos minutos eu estava relendo algumas das minhas antigas postagens no blog. Pensei: não é que eu escrevia bem?! Pois é... Os conhecidos (e talvez anônimos) seguidores deste blog viram muita coisa por aqui: algumas fases de textos bons, outras de textos ruins. Preferi reler apenas alguns que talvez fossem bons. Sei lá, dá uma certa vergonha de reler textos ruins, mas não deleto nenhum, pois bonitos e feios, foram todos feitos com muita sinceridade e coração. Estou tentando retomar a boa mão nos textos, voltar às origens, ao início de tudo, nesse sentido, exponho abaixo um texto que, embora de qualidade bem duvidosa, foi nota 10 em todos os quesitos da prova de redação do ENEM em 2007 e me ajudou a ingressar na universidade. Pra mim, ele tem um valor simbólico muito grande, expressa a minha busca pelo retorno ao ponto de partida e é produto dos meus 17 anos, das minhas inseguranças, imperfeições e sonhos. Segue abaixo, do jeito que consta no rascunho que fiz no verso da prova do ENEM, sem correções:
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Enunciado: 

 A cultura adquire formas diferentes através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criativade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecidada e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras. (UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural.)

Todos reconhecem a riqueza da diversidade no planeta. Mil aromas, cores, sabores, texturas, sons encantam as pessoas no mundo todo; nem todas, entretanto, conseguem conviver com as diferenças individuais e culturais. Nesse sentido, ser diferente já não parece tão encantador. Considerando a figura e os textos acima como motivadores, redija um texto dissertativo-argumentativo a respeito do seguinte tema.

O DESAFIO DE SE CONVIVER COM A DIFERENÇA
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REDAÇÃO:

O mundo é constituído por uma diversidade enorme de povos e culturas, sendo que mesmo dentro de cada povo verifica-se ainda significativas diferenças entre as pessoas. Devido a essa pluralidade de diferenças que existem entre cada um é importante que o homem saiba respeitá-las, pois somente assim a humanidade conseguirá conviver de modo mais harmônico e se desenvolver de modo mais igualitário.

Cada região do planeta possui cultura característica, o que contribui muito para que se observe uma grande variedade cultural na humanidade, porém paralelo a isso verifica-se uma intensa dificuldade entre os diversos povos em aceitar as características culturais de outros povos. Um reflexo disso é, por exemplo, a visão que o mundo ocidental tem da cultura oriental, principalmente no que se refere às religiões.

Mesmo dentro de um mesmo povo pode-se observar manifestações explícitas de preconceito contra a cultura dos diferentes povos que contribuem em sua constituição, por exemplo, o preconceito que há no Brasil contra os povos indígenas. Um povo que deseja se desenvolver precisa aprender a respeitar as diferenças que existem entre cada pessoa, pois dessa maneira fica mais fácil construir uma sociedade igualitária que ofereça condições de haver desenvolvimento em uma região ou país.

Conviver com a diferença é respeitar a individualidade alheia, o direito que o outro tem de fazer suas próprias escolhas. Todos possuem os mesmos direitos assegurados por leis, independente das diferenças étnicas e culturais de cada um, logo, é importante que cada um possua essa concepção para que também possa gozar de seus direitos. Para que a humanidade aprenda a conviver com as diferenças é necessário que cada um aprenda desde criança a importância de respeitar a identidade cultural e as individualidades do outro, por isso as escolas devem ensinar isso, dar exemplo ao respeitar e valorizar as diferenças étnicas de seus alunos; assim como os pais devem ensinar isso, dando exemplos e mostrando a importância da convivência com as diferenças.

Dessa forma, conviver com a diferença é um grande desafio, dadas as diferenças que existem entre as pessoas, mas se a humanidade aprender a fazer isso é indiscutível que ela colherá importantes frutos, como o fim de muitas guerras e um desenvolvimento mais igualitário.

sábado, 28 de julho de 2012

Da propriedade

Muito se fala sobre os malefícios do sistema capitalista. Muito se critica. Se arrota muita coisa por aí. Tem gente que defende até mesmo um sistema econômico pensado em uma época na qual a indústria era o setor mais importante da economia. Enfim, fala-se muito.

Mas o que precisa ser dito é que gostamos de consumir. Que gostamos de ter, de dizer que é meu, e não seu. Pouco se estuda como fazer o homem se desapegar do gosto de adquirir. Pra mim, o capitalismo não cai tão cedo porque ele conseguiu conquistar o amor das pessoas, conseguiu incutir um amor por ter. Enquanto não matarem esse sentimento, podem teorizar mil modelos de economia, falar em revolução e o caralho, mas não vai dar certo.

Cheguei a essa conclusão pensando em por que sinto prazer quando compro algo novo. A sensação que você tem ao comprar uma coisa usada é a mesma que tem quando compra algo novo (fechado na embalagem, com aquele cheirinho que você vai ser o primeiro a provar)? Provável que não. Embora a versão usada possa te deixar exultante, por certo que o mesmo produto em sua versão nunca usada lhe deixaria tri-exultante. Por quê? Não sei. Só sei que é assim.

Adquirir é prazeroso. Dá uma sensação gostosa de poder. Alguns meses atrás, lendo um texto sobre Kant, vi uma afirmação (que não posso atribuir ao pensamento dele por não ter estudado bem) no sentido de que a propriedade é uma extensão do corpo. Disso concluí que aquilo que é de minha propriedade é como uma parte de meu próprio corpo. Você cria uma relação de afeto com aquilo que adquire com o suor do seu trabalho. De alguma forma, penso eu, quando você olha para um tênis que acabou de comprar, não é ele que você enxerga, mas um pouco do seu trabalho que permitiu adquiri-lo. Você vê um pouco de si. É como se aquilo fosse reflexo do seu esforço, uma recompensa do seu trabalho.

Pensando assim, cheguei à conclusão de que a relação que nutrimos com aquilo que adquirimos com nosso esforço é muito íntima, mexe com nossos sentimentos. De alguma forma, quando alguém furta aquilo que você comprou, você se sente violado, agredido, e às vezes, um pouco morto. É como se trabalhar não compensasse, pois seu esforço não é respeitado. Dói ser furtado. Dependendo do valor pecuniário daquilo que se leva, dói mais que um soco bem dado na cara. Percebe? A sua propriedade é algo muito corporal, íntimo. Para alguns mais, para outros menos. Mas praticamente todos sentem algum desconforto em perder algo que pôde adquirir por meio de seu esforço.

Mata-se para manter a propriedade sobre algo. Por quê? Porque quando se defende a sua propriedade é como se você defendesse um membro do seu corpo, uma parte de si, um pedaço da própria vida. Daí a velha discussão de por que as leis protegem tanto a propriedade? Ora, porque a propriedade é um pouco de vida. Quando você defende a sua propriedade, de alguma forma você também defende a própria vida, algo de si. É claro que alguns exageram e levam qualquer ameaça de violação à sua propriedade ao extremismo, talvez por nutrirem um vínculo sentimental muito forte com a mesma. Isso se justifica? Pra mim não. Mas, de alguma forma, é possível tentar entender.

{A gente tem que parar com essa mania de não tentar entender aquilo com o que não concordamos. É preciso ouvir as opiniões de que não gostamos e tentar entendê-las para poder refutá-las, ou não. Tem muito nego que arrota intelectualismo por aí, mas não consegue tentar pensar um pouco sobre as razões de quem pensa diferente. Eu posso não concordar com as ideias do Deputado Bolsonaro, por exemplo, mas não acho democrático querer cassar o mandato do mesmo por causa delas. Ora, ele defende uma parcela da população que pensa como ele, pessoas que o elegeram e que pagam os mesmos impostos que eu e você. Isso é democracia. Debate de ideias. Por mim até neonazistas deveriam poder criar partidos, manifestar suas ideias, desde que não tivessem e não estimulassem atuação paramilitar. É óbvio que um partido assim não conseguiria, no contexto atual, aprovar leis que promovessem discriminação por raça, até porque nossa Constituição veda a criação de leis assim, mas qual o problema desses caras também poderem defender e debater o modelo de sociedade que querem? Isso é democracia.}

Eu acho que não sou capaz de matar para manter minha propriedade sobre algo, mas aposto que se eu flagrar um ladrão fugindo de minha casa pela janela com algo em suas mãos que lutei muito para conseguir comprar, eu serei capaz de estrangulá-lo (talvez até a morte), se puder. Contraditório, não? Pois é, fazemos discursos que na hora em que nos deparamos com o problema não sabemos se somos capazes de manter. A propriedade sobre algo que é nosso mexe com nossos sentimentos. É claro que há outras variantes que motivam um comportamento extremado como esse, como, por exemplo, a descrença no Poder Público. Contudo é inegável o meu amor por aquilo que conquistei; é inegável que nutro sentimentos por aquilo que é meu. É um pedaço de mim que foi conquistado. Só eu sei o quanto precisei me esforçar, os sapos que engoli para conquistar.

É notório que para alguns, essa extensão do corpo chamada propriedade vale mais do que o próprio corpo, mas aí já é outra questão. Aonde quero chegar é no ponto de que aquilo que tanto nos alegra quando compramos algo novo é o sentimento de que estamos sendo recompensados por nosso esforço. Enquanto não conseguirmos mudar essa mentalidade e parar de sentir prazer em comprar, desculpem-me os utópicos, nós nunca sairemos do modelo capitalista. Não é à toa que nunca fez sucesso nos socialismos implantados por aí essa ideia de que é tudo de todo mundo e meu apenas o necessário. É difícil achar justo alguém ter o mesmo que você embora tenha se esforçado menos para merecer, isso causa insatisfação em muita gente. Escute, não digo que concordo, mas que entendo os motivos. É isso: ter é mais que apenas ter. Sua propriedade é parte de você, uma extensão de ti, que será defendida (mesmo que negues) porque é um pouco do seu ser.

Ele voltou.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

De cor

Sabe aquela sensação de que as coisas estão indo? Não? Deveria conhecer. De alguma forma que não sei explicar as coisas estão indo. Meio na trombada; no empurrão; no ímpeto; de coração. Não sei explicar. É um movimento meio ameboide. Algo vai te puxando. Você vai. Pergunta se pode entrar e quando vê já está entrando. Meio de intruso. Como diria o mestre: "Passou a cabeça passa o resto". É meio assim. Tenho feito o que precisa ser feito sem me perguntar se de fato precisa ser feito. Algo diz que precisa ser feito e eu vou lá e faço. Evito me perguntar se deveria ter sido feito. Me contento em imaginar que fiz o que deveria ter feito naquele momento. Isso é libertador. E enganador. Depois eu poderei ver que despendi tempo com o que não devia. Mas prefiro pensar que não. Prefiro pensar que todas as supressões se mostrarão necessárias no futuro. E se eu perceber que errei? Errei, oras. Fiz o que pareceu ser necessário fazer.

Por outro lado, me pergunto. Tudo pode não passar de apenas uma sensação. De uma ilusão. Mas o que é a vida senão um conjunto de sensações alternadas e simultâneas? Um constante andar para frente. Mesmo quando se retorna se está avançando, rompendo a inércia. Viver exige movimento. Ação. Uma vontade de ir; de fazer; de romper; explodir. Tenho tido vontade de incendiar o mundo. De ver o o vidro romper. Tenho sede de caos, embora trabalhe objetivando a ordem. Mas o que é a ordem senão um caos amoldado? Cada um amolda o caos como bem entende, mas ele não está preso. A qualquer hora ele pode romper e emergir. E aí vão perguntar: quem libertou? Ora, ele nunca esteve preso, apenas esteve contido por um tempo, como cabelos presos em rabo de cavalo.

Vão falar que eu estou louco, mas não é não. É apenas transmissão simultânea. A música entra. A cabeça traduz. Os dedos libertam. Os olhos veem o resultado. Em tempo real. Coisa de menos de 3 segundos. É fácil escrever quando se liberta o que quer falar dentro de si. Deixa sair. Liberta. Fumo nada não. Não bebo. Dizem que esses são os mais perigosos. É aquela sensação de que as coisas estão indo. Tá entendendo como funciona? É assim. Algo vai te conduzindo e você vai trilhando sem direção. Sem ordem. Com caos. Mas um caos que conduz à ordem, afinal, o que é o caos senão uma desordem organizada dentro de uma palavra, dentro de um vocábulo? Qual? "Caos". Vá meu amigo. Siga. Ande. Mexa-se. Viva.

Vai.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Entrelinhas

Generalizações tendem a ser perigosas.

É comum ouvir mulheres dizendo: Homem é tudo igual; só quer saber de sexo.
É comum ouvir homens dizendo: Mulher é tudo igual; só quer saber de dinheiro.

Ora! Se todo homem só quisesse sexo e toda mulher só quisesse dinheiro, então... Acho que você entendeu.



sexta-feira, 20 de abril de 2012

Papel de pão

Prezado,
Às vezes sinto medo de suas inseguranças. Às vezes sinto medo de sua dedicação. Às vezes sinto medo de sua seriedade. Às vezes sinto medo de sua maluquez. Às vezes sinto medo de sua indecisão. Às vezes sinto medo de sua fraqueza. Às vezes sinto medo de sua disposição. Às vezes sinto medo de que você chegue onde quer chegar. Às vezes sinto medo de onde você vai chegar. Às vezes sinto medo dessa sua mania de se atirar desesperadamente acreditando que dá.
Às vezes sinto medo dos outros. Às vezes sinto medo de quem o elogia. Às vezes sinto medo de quem não aposta que você seja capaz. Às vezes sinto medo de quem faz juízos sobre você. Às vezes sinto medo de seus preconceitos. Às vezes sinto medo de suas opiniões. Às vezes sinto medo de seus momentos de fúria. Às vezes sinto medo de sua tranquilidade benevolente. Às vezes sinto medo de seus vícios. Às vezes sinto medo de sua ausência de vícios. Às vezes sinto medo de sua educação. Às vezes sinto medo das mulheres que não beijou. Às vezes sinto medo das mulheres que vão querer beijar você. Às vezes sinto medo de sua omissão. Às vezes sinto medo de seu agir extremado.
Às vezes sinto medo de seus pensamentos. Às vezes sinto medo de seus acertos. Às vezes sinto medo de seus erros. Às vezes sinto medo dela. Às vezes sinto medo daquilo que você não entende. Às vezes sinto medo do senhor seu chefe. Às vezes sinto medo do que você come. Às vezes sinto medo do que você desenha. Às vezes sinto medo das mulheres feias das quais você sente pena. Às vezes sinto medo dos seus momentos de soberba. Às vezes sinto medo do seu grito ausente. Às vezes sinto medo da sua morte. Às vezes sinto medo da sua sorte. Às vezes sinto medo dos seus medos. Às vezes sinto medo.
Às vezes sinto medo de mim.

domingo, 8 de abril de 2012

Cosmonauta

A cabeça gira sem sair do lugar. O mundo é o mesmo? Me sinto torto quando ereto e em movimento quando estático. Sinto que estive no espaço.

Os dias passaram sem a classe dos relógios. As horas dos remédios eram gritadas em meio a luz e a escuridão. Às vezes era dia; às vezes era noite. Eu me sentava, olhava a folha com os nomes e os engolia com um pouco de água. E esperava. Esperava. Esperava. Às vezes sentado olhando para o nada, esperando o tempo passar; às vezes deitado, dormindo um pouco ou delirando ao som da velha música da Louisiana. Mas sempre esperando as horas exatas. Elas iam e vinham o tempo todo; eu sei que vinham. Eu não as marcava no pulso, mas elas se gritavam. Passavam rápidas e depois demoravam pra chegar. Eu não as sentia passar. Mas passavam.

Foram-se os dias. A barba cresceu. Lá fora as pessoas ainda riam. Falavam em tom de escárnio. Dividiam espaço com os bichos e se entendiam. Se divertiam. Falaram que era hora de eu voltar. Que não podia ficar mais lá. Parti sem me pentear, trocar ou lavar. Levantei e fui. Sabia o que deveria fazer, como deveria me portar. Deveria voltar a falar uma língua minha não própria com pessoas conhecidas não.

Tudo aqui é muito grandioso. Mania de grandeza com uma ponta de insegurança. Faz parecer que somos maior que o Universo e que ele gira em torno daqui. Chama a atenção demais da conta. Cheio de luzes e não sei lá mais o quê. Tudo brilha. Pisca. Se mexe. Intimida. Por via das dúvidas, tratei logo de colocar o relógio no pulso. É bom estar prevenido, né? Again. Já conseguia sentir a vida vegetal se reaproximando. Era preciso reduzir a complexidade e o pluralismo espacial e subjetivo à artificialidade e padronização do ambiente do sistema binário. Ar inodoro de novo, sem o cheiro e o frescor de mato. Vidas comprimidas. Pessoas tão múltiplas enlatadas, padronizadas, amarradas e reduzidas ao espaço de uma teia. Falsa e frágil segurança. Oof... Vamos.

"Preparar para reingresso". A cabeça ainda balança em torno da Terra. Vaze mais aguda por dentro da fase. "Processo de reingresso ao centro iniciado". Status: sem paciência para dialogar com bad boys. Querem brigar, então briguem. Não querem aprender, não vou ensinar. Prometo dar uma faca para cada um. Que se furem até cansar. Status: sem saco para ficar bajulando artista. Todos eles têm um ego enorme, fingem modéstia, querem elogios, ser reconhecidos. Fodam-se vocês, seus vaidosos fingidos! Não vou alimentar a vaidade de quem se acha artista. Eu quero fazer parte do grupo que não entende nada de arte. Quero devorar a sua arte, mas não quero dar parabéns para você. Não tenho elogios a fazer. Viva o sapateiro Dr. Cley! Status: Este é o feminismo mais machista que já vi em todos os que tá tendo por aí. Lutar pelo direito de ser usada? É esse o desejo feminino no fim das contas? Status: Sem conversa mole. Sim. Não. Lacônico. Direto. Ronnievônico. Espontâneo. Pelo direito de não ter que explicar o que não se quer. "Reingresso concluído com falhas".



Somente quem voltou do espaço sabe o que é ficar fora de órbita.



Aos bravos cosmonautas.

sábado, 10 de março de 2012

[FILÉ COM FRITAS] Brasil: o país do amanhã.

[FILÉ]

Definitivamente, o Brasil é o país do amanhã. O país do amanhã eu faço.

Cada dia mais me surpreendo com a capacidade do povo brasileiro de deixar tudo sempre para a última hora. Não sei se é algo cultural, genético ou sei lá o quê. Mas não é segredo para ninguém que, em regra, gostamos sempre de enrolar para resolver as coisas.

Somos a 6ª economia do mundo e em breve seremos a 5ª, dizem os especialistas. Em tese, seremos um dos grandes países do amanhã, juntamente com outros países emergentes, dizem os economistas. Contudo, me espanta como os economistas são tão confiantes em relação a isso. São todos cegos! Veem apenas o lado econômico da coisa, acreditam que uma economia forte faz um país ser grande. Partem de um pressuposto errado? Não. Só esquecem que esse pressuposto é válido apenas para países desenvolvidos, países que alcançaram elevados níveis de desenvolvimento social após aquelas décadas do chamado Estado do Bem-Estar Social; esquecem que abaixo da linha do pecado, digo, do Equador, o nível de desenvolvimento econômico não acompanha o desenvolvimento da educação, dos serviços públicos...

Para mim, no Brasil não tivemos a época do chamado Estado do Bem-Estar Social. Vivemos há décadas um sistema híbrido que alia liberalismo econômico com paternalismo social. E pagamos caro por isso. Queremos evoluir no campo social, mas os liberais ficam dizendo que isso é ideia retrógrada, que a época disso já passou, que o negócio é ser neoliberal, como os países desenvolvidos, aí ficamos no meio do caminho: entramos de cabeça no sistema neoliberal fingindo que já tivemos (como os países desenvolvidos efetivamente tiveram) um período de Estado Social. Resultado: temos crescimento econômico e queremos manter os avanços sociais que pensamos termos feito nas décadas passadas. Vai dizer que nunca ouviu algum especialista dizer que o SUS é o melhor sistema PÚBLICO de saúde do mundo e que precisamos mantê-lo cada vez melhor? Para mascarar os avanços sociais que não tivemos ficamos inventando bolsas migalhas por aí, auxílios assistencialistas que achamos que podem resolver de imediato as falhas crônicas do nosso sistema social. Queremos sempre mascarar o agora para resolver, se der, depois.

Essa parece ser a tônica da nossa política. Vivemos de promessas. Por quê? Porque acreditamos em promessas. Acreditamos sempre que alguém fará amanhã; e digo mais, nos contentamos em ter a esperança do amanhã. Acontece, entretanto, que desde os anos 70 somos o tal país do amanhã. De um amanhã que nunca chega e, para mim, enquanto continuarmos nesse espírito de resolver no futuro, nunca chegará. Voltando às promessas, destaco que também acreditamos nelas porque levamos nossas próprias vidas “na promessa”. Repito: não sei se é cultural, mas a verdade (pelo menos a minha) é que gostamos de deixar tudo para depois e só quando o depois está prestes a estourar na nossa fuça é que tomamos uma atitude enérgica. Até lá gostamos de “cozinhar o galo”. Para alguns, isso é preguiça, razão pela qual dizem que somos um povo preguiçoso, conclusão que cada vez mais luto para não ter.

Numa democracia representativa como a nossa, os governantes não são nada mais do que um espelho de quem os elege. Partindo dessa premissa como verdade, tenho que se o Poder Público sempre que pode retarda ações efetivas para resolver os problemas nacionais, é porque isso é reflexo do que os brasileiros costumam fazer para resolver seus próprios problemas. Talvez isso explique, em parte, a nossa paixão pelos “jeitinhos”, afinal, eles não são nada mais do que meras soluções improvisadas para problemas imediatos. Problemas que muitas vezes poderiam ter sido evitados se no passado tivéssemos agido de modo mais enérgico quando o problema ainda era pequeno. Costumamos esperar um vazamento virar um desmoronamento para agirmos de alguma forma efetiva. É comum, por exemplo, situações em que o Poder Público faz uma obra, deixa de herança um buraco mal tampado e só volta para fechá-lo efetivamente quando alguém cai nele e morre. Só agimos com pressão. Só rompemos a inércia quando se omitir já não dá mais; já não é mais opção. Por que esperar diversas pessoas serem atropeladas numa rodovia antes de se construir uma passarela? Por que esperar o corrupto roubar de novo para reclamar dele depois? Não o eleja então, cacete! Por que esperamos as coisas acontecerem do pior modo possível ou ficarem prestes a chegar nesse nível para agirmos?

E a burocracia? Quantas vezes você já teve a sensação de que ela existe só para você desistir de fazer algo? Parte do objetivo dela é este mesmo: desestimular cobranças por ações imediatas; dar tempo para o Poder Público enrolar para resolver o problema. O negócio é enrolar. Enrolar ou deixar para outra pessoa resolver amanhã; transferir o agir para depois e, de preferência, para outra pessoa.

Tenho me divertido muito com as obras da Copa do Mundo. Tudo muito lento e parecendo que não vai ficar pronto a tempo. O mundo civilizado está morrendo de medo de nós (da selva) não termos obras prontas para o mundial. Eles não nos conhecem... Eles não sabem que tudo aqui tem que “ter emoção”, ser feito com jeitinho e sufoco. Não teria graça ter feito tudo com 1 ano e meio de antecedência. Não seria uma copa brasileira; seria uma copa alemã ou japonesa no Brasil. Relaxem, gringos! Vai ficar tudo pronto (ainda que o cimento da arquibancada fique seco no dia do 1º jogo). Relaxem. Vocês vão poder se divertir na 6ª (ou até 5ª) economia do mundo. Semana passada o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, disse que precisávamos de um chute na bunda para acelerar as obras. Nossa! “Ui! Como somos delicados...” Para o governo brasileiro isso foi quase uma declaração de guerra. Pergunto: Que mentira o homem branco do norte disse? Ele disse apenas que somos muito tranquilos para fazer as coisas urgentes. Que estamos retardando mais do que deveríamos obras que já deveriam estar prontas (tanto estádios como infra-estrutura: estradas, aeroportos...). Nós somos muito engraçados mesmo: adoramos sermos bajulados; queremos ter razão, mesmo estando com a tarefa de casa atrasada. E ainda queremos justificar o porquê! Foi um puxão de orelha merecido! E digo mais, deveríamos ter vergonha por estarmos assumindo frente ao mundo todo que só estamos tentando resolver problemas de infra-estrutura porque temos que parecer bem organizados ao mundo durante a Copa e as Olimpíadas. Noutros termos, só estamos saindo da inércia para não passar vergonha, para aparentar sermos um país organizado. Não estaríamos movendo uma palha do lugar para melhorar os aeroportos e as estradas se não tivéssemos que receber o mundo em 2014 e 2016.

Somos assim. Desde muito tempo. Pensamos que tudo pode se ajeitar depois; quem sabe amanhã. Mas eu ainda acredito que o nosso amanhã vai chegar, afinal, como consta no título de um dos filmes de 007: O amanhã nunca morre.

A você que não sei (e "nunca" soube) se sente o mesmo que eu.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Devaneio prussiano 82%

Olhando nos olhos dela via mais do que a alma dela; via mais do que devia e mais do que podia. Via o futuro. Um futuro cheio de novidades. O que teria e o que nunca teve.

Cheiro de rum.

O toque de outra pele lhe causava choque. Era estranho. Não sabia muito bem como era sentir o contato com uma pele mais macia que a sua. Parecia pecado. Algo proibido. Só o sentir das mãos já era incrível. Ele adorava mãos, sempre reparava nelas. Mas as mãos de uma mulher nas suas ainda causava choque, afinal, a maior parte de seus dias foram sem tocar na pele de qualquer mulher.

Os dedos dela estavam retorcidos.

Pintas. Ela as tinha aos montes. No pescoço sobravam, o que criava um belo contraste com sua pele alva. Pintas marrons que se afogavam.

Naquela época joelhos ainda eram bonitos. Os dela eram lindos. Ao mesmo tempo em que escondiam algo maior eles também deixavam escapar.

Era muita doidera de uma vez só.

Ele a preferia sem maquiagem. Assim conseguia ver melhor a pele e aqueles sedutores e convidativos lábios rosados tão delicados. Dava vontade de mordê-los. Engoli-los. Ele nunca os beijaria.

Precisava partir. A campanha lhe chamava. Mas antes de ir precisava vê-la uma última vez naquele vestido rosa. Mas que lindos joelhos. Como eram saudáveis.

Bebeu o último gole e largou o desconhecido rumo ao infinito.



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Os dias nublados se tornavam convidativos dias ensolarados próximos à lagoa. Os bueiros e os morteiros inimigos não explodiam embaixo dos pés dela. As sandálias dela eram capazes de trazer a paz mundial mesmo àquelas trincheiras imundas da Prússia.

Ela flutuava ao vento. Levantava voo em pleno vendaval. Domava a tempestade com o balançar de seus braços e ainda tinha tempo de seduzir com seus cabelos negros ao vento. Na foto que recebera dela ela abraçava o poeta, mas ele não conseguia parar de olhar para as pernas finas bem torneadas naquelas vestes. Vontade de apertar. Ela dizia que o poeta havia parado de escrever e posto seu livro de poesias embaixo dos braços só para vê-la melhor. É preciso estar atento com esses poetas. De bobo eles não têm nada. Sentia o calor do abraço dela só de olhar a foto.

Saudade de comer aquela ambrosia que só ela sabia fazer. Se Cristovão Colombo tivesse provado antes, talvez nunca tivesse querido ir à América aplicar sua matemática pura.

Era preciso ir devagar. A floresta oferecia muitos perigos para um jovem soldado prussiano. Ela poderia estar escondida entre os arbustos. Não queria acordá-la. A floresta o recebeu de braços abertos. Lá de cima os alpes eram verdes de neve e ela era feia. Descabelada. Parecia ter icterícia. Mas ainda tinha um quadril convidativo. Pela primeira vez conseguia ver as pernas dela com nitidez. Lá de cima o mar era o céu e o céu era o mar. Havia uma ponte entre eles. Ela sumira. De repente, tudo ficou negro. Por seis vezes.



Esperou e o silêncio não se rompeu. E lá se foi a caminhada na praia.

Obrigado, Ray.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Tá bandeira demais

- Ontem eu descobri uma grande farsa.
- Farsa?
- Sim, uma farsa. E esta é das grandes.
- Onde?
- No mundo.
- No mundo?
- Sim. Uma farsa nessa obra tão perfeita.
- O que você descobriu?
- Uma dica: envolve o novo mundo.
- Hã?
- A tal América.
- Ah, a América... Sempre me surpreendendo. O que tem a América dessa vez?
- Ela é uma grande farsa.
- Por quê? - interrogou o velho senhor com ar de susto
- Ora, pois! Como se você não soubesse a razão.
- Não sei. Quero que me mostre! - havia desafio na voz
- Comi sua rainha.
- Putz, é verdade!
- Quem vive na América vive mesmo no novo mundo? Você já parou para pensar sobre isso?
- Parar, parar mesmo, eu nunca parei, mas não deixa de ser verdade que eles vivem no novo mundo.
- Hipócrita! Como podes falar uma asneira dessa com tanta tranquilidade! - esbravejou batendo com a mão esquerda sobre a mesa.

Nesse instante, o mundo das peças de xadrez que ainda restavam em cima daquele belo tabuleiro de vidro balançou. O chão tremeu e algumas até caíram sobre o tabuleiro. O clima tornou-se tenso e o silêncio reinou entre elas.

- Este é o mundo mais velho que eu conheço! Não há nada de novo nele! Um mundo povoado por pessoas do velho mundo dispostas a implantar o modo de vida do velho mundo. Como isto ainda pode ser chamado de novo mundo? Onde está o novo? Mas o negócio aqui tá muito bandeira/ Tá bandeira demais meu Deus / Cuidado brother, cuidado sábio senhor. (Metrô Linha 743 - http://www.youtube.com/watch?v=PRZa3c6y07M&feature=related)

As peças seguiam em silêncio. Ouvia-se apenas o gemido de um cavalo branco que caía ferido por um pequeno peão negro sobre o tabuleiro.

- A Europa colonizou o novo mundo de modo a torná-lo velho; de modo a matar nele tudo que havia de novo.
- Não exagere... Muita coisa se manteve! E o que falar dos Estados Unidos? Ora! Eram ingleses que queriam refazer a vida no novo mundo e refizeram. Criaram um novo país!
- Hipócrita! Como não vê?
- O quê?

E a batalha seguia voraz. Agora era o barulho da queda dos escombros de uma torre branca que cortava o silêncio do tabuleiro.

- Ainda pergunta? É frustrante ver como que aquilo que tinha tudo para ser um novo mundo tornou-se uma cópia mal feita do que era velho. Os imigrantes que povoaram o novo mundo, embora quisessem reconstruir suas vidas, não fizeram mais do que repetir o estilo de vida que do velho mundo. O que faz os Estados Unidos tão diferentes da Europa?

Novo silêncio.

- Discordo! E a miscigenação que fiz na América? É um modelo de coexistência com tolerância. Isso não conta?

- Coexistência pacífica? Deu tudo errado. Desde o início os do velho mundo não mostraram qualquer desejo de tolerância. Chegaram dispostos a matar os novos amigos. Que tolerância é essa?

Aquele senhor, sempre sem muitas reações, engoliu seco ao ouvir essa conclusão. Parecia sentir certo desconforto. E os peões brancos seguiam caindo no tabuleiro. Era um banho de sangue.

- O novo ficou velho cedo demais! Você não devia ter dado aos europeus uma nova chance de se salvarem. Ao invés de se salvarem eles logo trataram de se perder de novo e de colocar aquela gente que não tinha nada a ver com isso na perdição deles. Eles mataram tudo que pudesse florescer de novo na América. Esmagaram a cultura, os recursos naturais que poderiam ajudá-los a viver em paz por longos anos... Estragaram a 2ª chance!

E caiu o primeiro bispo branco. Todas a peças olharam incrédulas. Mas o jogo seguiu.

- O novo mundo repete a exploração do velho mundo, a intolerância, a ganância, o preconceito, a violência, a exploração, a miséria de uns em face da riqueza de outros. O que há de novo? Onde estão as pessoas que disseram orgulhosas e esperançosas que iam para o novo mundo? O que elas fizeram para torná-lo verdadeiramente um mundo novo? Será que elas apenas esperaram que ele fosse manter-se novo, apesar das práticas velhas lá praticadas?

Era de dar pena. O sábio senhor parecia ter os olhos marejados. Há quem diga que uma lágrima teimosa tenha escorrido pelo rosto dele, mas nunca se soube ao certo. A única certeza é a de que mesmo fragilizado ele não parava de jogar. Seguia arrastando suas peças por aquele tabuleiro, ainda que elas parecessem fadadas à morte.

- A verdade é que não há novo que resista a ideias velhas. Foi isso o que aconteceu com a América. As práticas velhas contaminaram o mundo novo e ele logo se tornou velho. Não restam mais saídas. Deveria ter visto isso quando lhe falei para não dar mais uma chance àquela gente ruim. Eu havia te dito antes: "Sua criação não é perfeita. Eles nasceram ruins. Vai ter que fazer tudo de novo". E você? Você falou assim: "Eu confio nos meus garotos, eles saberão retomar o caminho certo." E no que deu?

Frustrando aquilo que todos aqueles olhos vidrados pareciam esperar após aquela saraivada de críticas, o velho senhor, em silêncio, mas com um semblante mais firme e sereno seguiu jogando, jogando, jogando, jogando... Até proferir a sentença final com o canto dos lábios:

- Eu ainda acredito nas peças que tenho. Xeque.


http://roundtheworld.webs.com/trevo_3_folhas_simbolo_da_irlanda.jpg