domingo, 1 de maio de 2016

Teoria do recato

Tempos de meias palavras; de cumprimento com mão mole; de necessaire, toilette e estrangeirismo desnecessário; de pratos gourmet; de recato.

Tempos de sofisticação forçada, no qual o que aparenta ser sofisticado ganha respeitabilidade. Ter classe e elegância, de modo geral, é algo contrário à nossa natureza animal. Analogicamente, Adão e Eva eram nus até pecarem, tendo optado voluntariamente pela "civilidade" de sempre usar vestes em detrimento da liberdade da vida nua.

O que explica vestir um terno e uma gravata em um dia infernalmente ensolarado e para trabalhar em algo que exija liberdade de movimento dos membros superiores? Civilidade. Aliás, para que servem as gravatas para além de ornamento? O que explica jantar um prato esteticamente bonito em um restaurante de alto padrão e voltar para casa com fome? Civilidade.

Ter classe se tornou um símbolo de evolução humana, como se quem consegue agir com elegância, consegue controlar seus instintos humanos de liberdade, consegue reprimir aquilo que lhe deixaria mais à vontade, fosse alguém mais desenvolvido. Afinal, não se nasce com "garbo e elegância", com classe, com civilidade; se adquire, se aprende.

É pecado ter classe? De forma alguma, mas é anti-natural não se fazer o que se quer somente porque isso pode ser considerado algo "feio", rude e ser utilizado para criar uma má impressão das pessoas acerca de você. A melhor coisa de "ser" é a liberdade de "ser", de forma que se restringir em prol de "parecer" é um aniquilamento de si mesmo.

Para algumas pessoas, no entanto, a elegância e a classe já estão de tal modo intrínseco no "ser" delas que simplificar significa um regresso, uma desevolução, um andar para trás, uma vez que já não sabem viver se não for com sofisticação, se não for com 15 talheres, mas nenhum dedo, para pegar com as mãos a "galinha" que insiste em escorregar do prato.

Às vezes tenho vontade de falar em público, com pronúncia portuguesa, as palavras estrangeiras que cada vez mais insistimos em utilizar sem necessidade, mas isso soaria estranho. Ainda quero ter coragem de chegar em uma loja que coloca "50% OFF" na vitrine e pedir para ir à "casa de banho" do estabelecimento. Sente como é feio falar "casa de banho" ("banheiro" em português de Portugal) com um brasileiro? Usar uma língua/expressão estrangeira para se comunicar com um povo que não fala aquela língua é algo como dizer que está enxergando as roupas invisíveis do imperador, é uma conduta de quem quer demonstrar classe, elegância, superioridade, sem necessidade.

Veja! Não estou a defender que as pessoas não podem ser elegantes, principalmente se só assim conseguem se sentir bem. Não estou a defender "voto de pobreza" ou que se finja simplicidade. Por outro lado, ninguém é obrigado a preferir champagne ao invés de xixa só porque beber a primeira ao invés da segunda é mais sofisticado. Veja! Não ser sofisticado e não ter classe não é pecado; aliás, me arrisco a dizer, voltando ao exemplo de Adão e Eva, que o pecado está mais na classe do que na falta de classe, afinal, o homem foi feito para a liberdade e, a partir do momento que achou necessário restringir sua liberdade com roupas incompatíveis com a temperatura de onde vive, com vocabulário estrangeiro e etc, boicotou um pouco de si mesmo, de sua divina liberdade.

Interessante que mesmo os mais sofisticados precisam ficar (ainda que parcialmente) nus para realizar suas necessidades básicas como pessoa, inclusive o sexo. Aliás, perder a classe expondo-se ao nu é um encontro com nossa verdadeira natureza, com quem somos a maior parte do tempo e não podemos expor, sendo assim injusta a vergonha que, em geral, sentimos ao expor nossas imperfeições físicas no momento da nudez. Dentro da ótica da civilidade, o sexo é uma deselegância, uma falta de recato, uma perda de autocontrole, de classe - diretamente relacionada com o livre exercício da liberdade humana, aquela que contemos em grande parte do tempo usando roupas, um vocabulário selecionado e com atitudes civilizadas.

Não desconsidero as questões de higiene por trás de alguns hábitos de civilidade. Aliás, civilidade é um mal necessário em muitos momentos, mas parece que cada vez mais a motivação para a civilidade excessiva é o caráter evolutivo, é o demonstrar o quanto somos evoluídos e capazes de aprender hábitos anti-naturais, como andar de salto alto, no caso das mulheres, e usar gravata, no caso dos homens. Quanto mais classe se demonstra, mais superioridade se exterioriza.

De verdade, respeito muito quem tem a inocência de segurar uma coxa de galinha com as mãos, de rir sem razão, de andar mal vestido e encardido, de não falar outra língua sem necessidade e de sair para comer em um restaurante e não voltar com fome para casa após comer pratos esteticamente bonitos.

É nessa inocência, na falta de medo de ser você e fazer o que lhe dá prazer, que mora a liberdade.

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