segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Tá bandeira demais

- Ontem eu descobri uma grande farsa.
- Farsa?
- Sim, uma farsa. E esta é das grandes.
- Onde?
- No mundo.
- No mundo?
- Sim. Uma farsa nessa obra tão perfeita.
- O que você descobriu?
- Uma dica: envolve o novo mundo.
- Hã?
- A tal América.
- Ah, a América... Sempre me surpreendendo. O que tem a América dessa vez?
- Ela é uma grande farsa.
- Por quê? - interrogou o velho senhor com ar de susto
- Ora, pois! Como se você não soubesse a razão.
- Não sei. Quero que me mostre! - havia desafio na voz
- Comi sua rainha.
- Putz, é verdade!
- Quem vive na América vive mesmo no novo mundo? Você já parou para pensar sobre isso?
- Parar, parar mesmo, eu nunca parei, mas não deixa de ser verdade que eles vivem no novo mundo.
- Hipócrita! Como podes falar uma asneira dessa com tanta tranquilidade! - esbravejou batendo com a mão esquerda sobre a mesa.

Nesse instante, o mundo das peças de xadrez que ainda restavam em cima daquele belo tabuleiro de vidro balançou. O chão tremeu e algumas até caíram sobre o tabuleiro. O clima tornou-se tenso e o silêncio reinou entre elas.

- Este é o mundo mais velho que eu conheço! Não há nada de novo nele! Um mundo povoado por pessoas do velho mundo dispostas a implantar o modo de vida do velho mundo. Como isto ainda pode ser chamado de novo mundo? Onde está o novo? Mas o negócio aqui tá muito bandeira/ Tá bandeira demais meu Deus / Cuidado brother, cuidado sábio senhor. (Metrô Linha 743 - http://www.youtube.com/watch?v=PRZa3c6y07M&feature=related)

As peças seguiam em silêncio. Ouvia-se apenas o gemido de um cavalo branco que caía ferido por um pequeno peão negro sobre o tabuleiro.

- A Europa colonizou o novo mundo de modo a torná-lo velho; de modo a matar nele tudo que havia de novo.
- Não exagere... Muita coisa se manteve! E o que falar dos Estados Unidos? Ora! Eram ingleses que queriam refazer a vida no novo mundo e refizeram. Criaram um novo país!
- Hipócrita! Como não vê?
- O quê?

E a batalha seguia voraz. Agora era o barulho da queda dos escombros de uma torre branca que cortava o silêncio do tabuleiro.

- Ainda pergunta? É frustrante ver como que aquilo que tinha tudo para ser um novo mundo tornou-se uma cópia mal feita do que era velho. Os imigrantes que povoaram o novo mundo, embora quisessem reconstruir suas vidas, não fizeram mais do que repetir o estilo de vida que do velho mundo. O que faz os Estados Unidos tão diferentes da Europa?

Novo silêncio.

- Discordo! E a miscigenação que fiz na América? É um modelo de coexistência com tolerância. Isso não conta?

- Coexistência pacífica? Deu tudo errado. Desde o início os do velho mundo não mostraram qualquer desejo de tolerância. Chegaram dispostos a matar os novos amigos. Que tolerância é essa?

Aquele senhor, sempre sem muitas reações, engoliu seco ao ouvir essa conclusão. Parecia sentir certo desconforto. E os peões brancos seguiam caindo no tabuleiro. Era um banho de sangue.

- O novo ficou velho cedo demais! Você não devia ter dado aos europeus uma nova chance de se salvarem. Ao invés de se salvarem eles logo trataram de se perder de novo e de colocar aquela gente que não tinha nada a ver com isso na perdição deles. Eles mataram tudo que pudesse florescer de novo na América. Esmagaram a cultura, os recursos naturais que poderiam ajudá-los a viver em paz por longos anos... Estragaram a 2ª chance!

E caiu o primeiro bispo branco. Todas a peças olharam incrédulas. Mas o jogo seguiu.

- O novo mundo repete a exploração do velho mundo, a intolerância, a ganância, o preconceito, a violência, a exploração, a miséria de uns em face da riqueza de outros. O que há de novo? Onde estão as pessoas que disseram orgulhosas e esperançosas que iam para o novo mundo? O que elas fizeram para torná-lo verdadeiramente um mundo novo? Será que elas apenas esperaram que ele fosse manter-se novo, apesar das práticas velhas lá praticadas?

Era de dar pena. O sábio senhor parecia ter os olhos marejados. Há quem diga que uma lágrima teimosa tenha escorrido pelo rosto dele, mas nunca se soube ao certo. A única certeza é a de que mesmo fragilizado ele não parava de jogar. Seguia arrastando suas peças por aquele tabuleiro, ainda que elas parecessem fadadas à morte.

- A verdade é que não há novo que resista a ideias velhas. Foi isso o que aconteceu com a América. As práticas velhas contaminaram o mundo novo e ele logo se tornou velho. Não restam mais saídas. Deveria ter visto isso quando lhe falei para não dar mais uma chance àquela gente ruim. Eu havia te dito antes: "Sua criação não é perfeita. Eles nasceram ruins. Vai ter que fazer tudo de novo". E você? Você falou assim: "Eu confio nos meus garotos, eles saberão retomar o caminho certo." E no que deu?

Frustrando aquilo que todos aqueles olhos vidrados pareciam esperar após aquela saraivada de críticas, o velho senhor, em silêncio, mas com um semblante mais firme e sereno seguiu jogando, jogando, jogando, jogando... Até proferir a sentença final com o canto dos lábios:

- Eu ainda acredito nas peças que tenho. Xeque.


http://roundtheworld.webs.com/trevo_3_folhas_simbolo_da_irlanda.jpg