terça-feira, 18 de setembro de 2012

Caronte

Trabalhar com a morte lhe fazia bem. Nunca antes havia sentido tanto prazer em um ofício, e olha que ele teve vários antes de encontrá-lo. A morte completava a sua vida.

Todos os dias era a mesma coisa. Ele passava os dias dirigindo o carro do IML sem rumo, atendendo chamados para buscar corpos sem vidas. Era como um táxi da morte. Alguns passageiros furados de balas, outros em estado de decomposição... As possibilidades eram muitas. Sentia sua vida se renovar a cada nova viagem para buscar um corpo. Era a mesma sensação há mais de um quarto de século. Sempre o mesmo frio na barriga, a mesma ansiedade. Como um juvenil em início de carreira.

Não se importava com a aparência com que tinham os mortos quando eram buscados. Nem com o cheiro. Era indiferente se pessoas choravam, gritavam, se curiosos se aglutinavam como abutres em volta e se os flashes da imprensa brilhavam como olhos apaixonados. Não deixava que ninguém atrapalhasse aquele momento seu com a morte.

Gostava de poder olhar nos olhos de seus passageiros. Vê-los com o olhar perdido de quem busca encontrar a eternidade no horizonte. Não tinha medo de fitá-los. Ao contrário. Era no olhar dos mortos que via o que o ser humano tem de mais puro. Pareciam recém-nascidos tendo os primeiros contatos com a vida. Via a fragilidade daqueles que não tinham ninguém mais por eles e pareciam clamar por misericórdia. Via a fraqueza daqueles que durante toda a vida se portaram como valentes. Alguns pareciam pedir perdão. A esses, dava seu perdão pelos males, como se fosse religiosamente investido para tal fim. Outros pareciam pedir que ele desse um último recado a alguém, que dissesse por eles algo que não foi dito por falta de tempo, medo ou coragem. A esses prometia em silêncio que cumpriria o pedido, mesmo sabendo que não o faria. Não queria que eles fossem embora com alguma preocupação ou arrependimento pendente. Sentia-se sempre o último confidente deles; a última pessoa vista por eles. Era uma honra, por certo. Daí nunca ter ido trabalhar sem que estivesse vestido de modo respeitoso e com o bigode aparado. Ele vivia para os mortos.

Sempre fechava os olhos dos mortos antes de colocá-los para dormir no carro preto. Quando os colocava dentro do saco, sentia-se como um pai colocando o filho para dormir, principalmente quando eram as jovens vítimas do tráfico. Sabia que muitos daqueles jovens nunca tiveram pais ou uma família que lhes tivesse dado carinho. Fazia questão de garantir que ao menos na hora da morte se sentissem amados. Fazia sempre uma prece pelos indigentes. Não ria ou ouvia música enquanto transportava os mortos. Pouco conversava com seu colega de trabalho que lhe ajudava diariamente. Teve vários ao longo da vida. Diziam na repartição que ele era mais frio que os corpos que transportava. O que não sabiam era que a morte o aquecia mais a cada dia, o deixava mais vivo. Era como se aqueles corpos indefesos e frágeis lhe dessem força.

Um dia, no entanto, o caronte morreu. E ninguém passou para buscá-lo.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

REC

Há poucos minutos eu estava relendo algumas das minhas antigas postagens no blog. Pensei: não é que eu escrevia bem?! Pois é... Os conhecidos (e talvez anônimos) seguidores deste blog viram muita coisa por aqui: algumas fases de textos bons, outras de textos ruins. Preferi reler apenas alguns que talvez fossem bons. Sei lá, dá uma certa vergonha de reler textos ruins, mas não deleto nenhum, pois bonitos e feios, foram todos feitos com muita sinceridade e coração. Estou tentando retomar a boa mão nos textos, voltar às origens, ao início de tudo, nesse sentido, exponho abaixo um texto que, embora de qualidade bem duvidosa, foi nota 10 em todos os quesitos da prova de redação do ENEM em 2007 e me ajudou a ingressar na universidade. Pra mim, ele tem um valor simbólico muito grande, expressa a minha busca pelo retorno ao ponto de partida e é produto dos meus 17 anos, das minhas inseguranças, imperfeições e sonhos. Segue abaixo, do jeito que consta no rascunho que fiz no verso da prova do ENEM, sem correções:
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Enunciado: 

 A cultura adquire formas diferentes através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criativade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecidada e consolidada em benefício das gerações presentes e futuras. (UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural.)

Todos reconhecem a riqueza da diversidade no planeta. Mil aromas, cores, sabores, texturas, sons encantam as pessoas no mundo todo; nem todas, entretanto, conseguem conviver com as diferenças individuais e culturais. Nesse sentido, ser diferente já não parece tão encantador. Considerando a figura e os textos acima como motivadores, redija um texto dissertativo-argumentativo a respeito do seguinte tema.

O DESAFIO DE SE CONVIVER COM A DIFERENÇA
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REDAÇÃO:

O mundo é constituído por uma diversidade enorme de povos e culturas, sendo que mesmo dentro de cada povo verifica-se ainda significativas diferenças entre as pessoas. Devido a essa pluralidade de diferenças que existem entre cada um é importante que o homem saiba respeitá-las, pois somente assim a humanidade conseguirá conviver de modo mais harmônico e se desenvolver de modo mais igualitário.

Cada região do planeta possui cultura característica, o que contribui muito para que se observe uma grande variedade cultural na humanidade, porém paralelo a isso verifica-se uma intensa dificuldade entre os diversos povos em aceitar as características culturais de outros povos. Um reflexo disso é, por exemplo, a visão que o mundo ocidental tem da cultura oriental, principalmente no que se refere às religiões.

Mesmo dentro de um mesmo povo pode-se observar manifestações explícitas de preconceito contra a cultura dos diferentes povos que contribuem em sua constituição, por exemplo, o preconceito que há no Brasil contra os povos indígenas. Um povo que deseja se desenvolver precisa aprender a respeitar as diferenças que existem entre cada pessoa, pois dessa maneira fica mais fácil construir uma sociedade igualitária que ofereça condições de haver desenvolvimento em uma região ou país.

Conviver com a diferença é respeitar a individualidade alheia, o direito que o outro tem de fazer suas próprias escolhas. Todos possuem os mesmos direitos assegurados por leis, independente das diferenças étnicas e culturais de cada um, logo, é importante que cada um possua essa concepção para que também possa gozar de seus direitos. Para que a humanidade aprenda a conviver com as diferenças é necessário que cada um aprenda desde criança a importância de respeitar a identidade cultural e as individualidades do outro, por isso as escolas devem ensinar isso, dar exemplo ao respeitar e valorizar as diferenças étnicas de seus alunos; assim como os pais devem ensinar isso, dando exemplos e mostrando a importância da convivência com as diferenças.

Dessa forma, conviver com a diferença é um grande desafio, dadas as diferenças que existem entre as pessoas, mas se a humanidade aprender a fazer isso é indiscutível que ela colherá importantes frutos, como o fim de muitas guerras e um desenvolvimento mais igualitário.