sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Noite

À noite, tudo é negro.
A lua não consegue evitar.
O céu é cúmplice,
Homens lobisomens ao luar.

A noite é dos bichos.
Saem dos guetos
Dispostos a atacar,
Sobreviver e a matar.

Sirenes intimidam na madrugada.
- É a polícia!
Rondas guardando sonhos,
Gritos e tiros matando rebanhos.

Sirenas a cantar.
- Cuidado, marujo!
Ouvidos de cera,
Perigo no mar.

É preciso dormir,
Para se proteger,
Resistir às tentações.
O sol vai nascer.

Bom dia aos vivos!
Aos sobreviventes do açoite!
Dicotomia dos astros,
Boa noite!

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Mamilos são polêmicos

A Copa do Mundo me fez adquirir um novo comportamento: não consigo assistir os jogos sofríveis do Campeonato Brasileiro sem fazer alguma outra coisa simultaneamente. Neste momento,  enquanto passo os olhos em mais uma derrota do meu time no campeonato brasileiro, escrevo o rascunho da postagem a mão em uma folha de papel.

Tenho muita coisa pra escrever aqui no blog, mas este macaco de camisetas que vos escreve está de mudança para outra cidade em alguns dias em razão da nomeação em um concurso público e por isso está com a cabeça a mil.

Mas então.

O tema desta postagem está meio velho, mas preciso expor minha opinião sobre ele.

Há cerca de um mês, uma garota gaúcha se tornou assunto nacional ao ser flagrada chamando de "macaco", aos gritos, o goleiro Aranha, do time do Santos, durante a vitória desse time por 3x0 sobre a equipe Grêmio, em Porto Alegre/RS.

Esse fato foi amplamente noticiado pela imprensa brasileira, gerando indignação nacional. Resultado: a tal gaúcha foi demitida de seu emprego; teve a casa incendiada por um lunático; está respondendo a inquérito policial; e se tornou alvo de toda sorte de críticas.


Onde quero chegar. Cara, essa gente toda não sabe o que é a atmosfera de um campo de futebol. Não! Não tô dizendo que a gaúcha não praticou um ato de ofensa e tampouco estou apoiando a conduta dela. Mas não consigo ver no ato dela a mesma carga de reprovabilidade que os meios de comunicação deram.

Eu, indivíduo pardo de pai negro, apoiador das cotas raciais e favorável a toda forma de inclusão social da população negra, achei tudo um grande escândalo e espetáculo exagerado.

Quem, como eu, vai ao estádio, ainda que nos estádios amadores do Espírito Santo, sabe que durante uma partida de futebol vive-se tudo muito intensamente (além da racionalidade). Pessoas pacatas são capazes de xingar a mãe do juiz e dos atletas durante todo o jogo, de mandar todos ou alguns dos que estão em campo se foderem (até os jogadores do próprio time). Em resumo, nada é racional em um campo de futebol. Aliás, os próprios jogadores se xingam durante os jogos, tudo para desestabilizar psicologicamente o oponente. As ofensas fazem parte do futebol de maneira tão natural quanto o fato de a bola ser redonda.

Ao pé da letra, xingar o juiz de "filho da puta" é crime, assim como também é chamar um jogador do time adversário de "viado" etc. Mas por que ninguém se revolta com os autores dessas ofensas? É tudo crime, minha gente! Assim como chamar um atleta de "macaco". Só muda o delito, mas são todas condutas criminosas.


GOOOOOOL DO MEU TIME! VAMOS, PORRA! EMPATAMOS O JOGO!

Voltando...

É muita hipocrisia esse povo todo de uma hora para outra achar inaceitável a conduta da gaúcha, mas no domingo essa mesma gente ir no estádio e chamar os jogadores do time adversário de "viados". Ué? "Macaco" não pode, mas chamar de "viado" pode? O peso das ofensas são diferentes?

Onde quero chegar. Pra mim, torcedor é tudo "doente" dentro de um estádio. Alguns mais, outros menos, mas todos "doentes".

GOOOOOOOL DE NOVO! VIRAMOS, CARALHO!

Voltando...

Se a torcida perde o controle racional durante o jogo, quem tem que ser punido pelos excessos é o time. Não UM torcedor individualmente. No caso concreto, o Grêmio foi eliminado da competição por causa do comportamento de sua torcedora e outros ao redor dela. Perfeito! Uma decisão padrão Europa e sem precedentes por aqui, onde tudo acaba em multas ridículas para os times de futebol. Punições ao clubes reprimem os torcedores de fazerem merda.

O torcedor é um "doente" que geralmente ama seu time acima de quase tudo. Por isso, ofende e se excede dentro do estádio. O torcedor prefere não fazer merda e vigiar os outros para também não fazerem se souber que seu time pode ser punido por suas condutas. Já punir UM torcedor individualmente pode até fazer o torcedor punido mudar suas condutas, mas tem efeito quase que nenhum sobre os demais.

Pra mim, foi lamentável a crucificação da gaúcha "doente" pelo Grêmio como se ela fosse uma racista nazista, digna de toda punição. Pra mim, ela errou, cometeu um crime, mas não fez algo que justificasse o tratamento que recebeu de nossa sociedade, que, diga-se de passagem, não é nem um pouco racista em suas práticas cotidianas...

Rotular de racista quem xinga em um campo de futebol, pra mim, é um excesso, haja vista as insanidades que os torcedores gritam sem pensar no calor de partidas de futebol. Veja se isso não é um depoimento de uma pessoa "doente" por um clube:


Ela fala mais do Grêmio, sua paixão, do que efetivamente do que fez. Pra mim, ela é "doente" pelo Grêmio, de fato, e não propriamente uma racista.

E digo mais. É preciso sensibilidade para saber diferenciar a conduta de quem ofende um adversário no calor do jogo daquela conduta de quem, de maneira premeditada, leva uma banana e faixas racistas para um campo de futebol, por exemplo. Pra mim, não dá pra colocar tudo no mesmo balaio.

Porém, infelizmente, nossa sociedade gosta de ser hipócrita, de dar peso igual para coisas diferentes; de achar mais reprovável a conduta individual da gaúcha branca em um campo de futebol do que as condutas de policiais que diariamente discriminam a população negra em suas abordagens de "suspeitos" e dos governantes que fecham os olhos para políticas de inclusão dos negros.

Quem dera se os problemas raciais de nosso país se resumissem a ofensas individuais proferidas por torcedores dentro de estádios de futebol.

A propósito, sabe o jogo que eu tava assistindo enquanto escrevia? Ganhamos daquele time de merda!

sábado, 30 de agosto de 2014

Perfil

A caminho de sua 100ª postagem, o macaco de camisetas que escreve neste blog resolveu conceder uma entrevista exclusiva na qual preenche listas incomuns sobre suas preferências e, dessa forma revela traços de seu desconhecido perfil. 

É no incomum que se descobre o que as pessoas têm de mais natural.

Don Quasímodo, poderia começar nos dizendo coisas comuns que você não sabe/consegue fazer?
1- Andar de bicicleta.
2 - Nadar.
3 - Ouvir em inglês e entender.
4 - Chamar garotas para sair.
5 - Abrir latas com abridor

Coisas incomuns das quais você gosta?
1 - o dia de Domingo
2 - cheiro de mato molhado de manhã
3 - sentir o avião pegando velocidade para decolar
4 - assistir programa político

Dilma, Marina ou Aécio?
Dilma.

Uma cidade a conhecer?
Buenos Aires.

Viagens incomuns a fazer:
1 - De trem, no vagão sem ar condicionado, de São Luis/MA até Parauapebas/PA.
2 - Islândia, Escócia e Irlanda.
3 - Mônaco.
4 - Cidade do México.

Gasturas/frescuras:
1 - Ouvir papel rasgando.
2 - Ver gente lixando unha.
3 - Encostar o dedo com a unha cortada em uma superfície áspera

Manias:
1 - ao entrar em casa, ir acendo as luzes de cada cômodo que vou entrando sem apagar as que acendi nos cômodos que deixei para trás (mania herdada de quando eu ainda tinha medo de escuro)
2 - cheirar as mãos
3 - usar sempre as mesmas expressões/reações para as mesmas situações
4 - almoçar sentado no chão (só vou para a mesa quando a ocasião exige)
5 - Cantar ao sentir medo.

Habilidades a desenvolver:
1 - pilotar avião
2 - pilotar carros de corrida
3 - aprender coreano (para entender o que falam os jornais da Coreia do Norte), russo e árabe
4 - ouvir bem em inglês

Comida detestável:
Bife de fígado

Pratos favoritos:
1 - Torta de espinafre
2 - Salmão com alcaparras
3 - Big Mac

Padrões de beleza favoritos:
1 - mulher ruiva com sardas
2 - mulher loira de olhos azuis
3 - morena brasileira (aquela de cor café com leite, com bunda e seios na medida)

É afrodisíaco para você:
1- mulheres com calça de couro
2- mulheres brancas vestidas de rosa claro ou de roxo
3 - mulheres sussurrando em francês

Diz aí umas músicas de raiz que ninguém imagina que você gosta:
1- "60 dias apaixonado" (Chitãozinho e Xororó)
2 - "Rio de Piracicaba" (Tião Carreiro e Pardinho). 
2 - Sérgio Reis e Almir Sater são monstros também: "Poeira Vermelha", "Caminheiro", "Cortando estradão" e por aí vai.
Sei que não são sertanejas, mas curto muito também duas músicas paraenses que até já renderam postagens: "Eu te amo meu amor" (Frankito Lopes) e "Te encontro em Marabá" (Roberto Villar). São músicas de ritmo alegre e malemolente, feitas pelo povo para o povo.

Músicas de corno que você ouve:
1 - "É o amor" (Zezé di Camargo e Luciano): muito natural e poética
2 - "Quem sou eu sem ela" (Zezé di Camargo e Luciano): o refrão é daqueles bem grudentos
3- "Eu te darei o céu" (Roberto Carlos)
4 - "Vou tirar você deste lugar" (Odair José): Odair José é um gênio da música, compõe muito bem, diga-se de passagem. E não estou de gozação!

E rock? O que sugere?
Rock é meu ritmo favorito. Mas como gosto de muita coisa, vou destacar só o que curto de mais pesado:
1 - Dropkick Murphys: o que é eles tocando "Rocky Road To Dublin"? Foda! Aliás, quase entrei para pegar meu diploma ao som de "I'm shipping up to Boston"
2 - Motörhead
3 - "Dirty Window" e "Frantic" (Metallica)

E samba? Curte alguns?
1 - "Falador passa mal" (Originais do Samba)
2 - "Zé do caroço" (Revelação)
3 - "Convite para a vida" (Seu Jorge)
4 - "Juízo Final" (Nelson Cavaquinho)
5 - "Preciso me encontrar" (Cartola)

E a 100ª postagem? O que será?
Será como uma ejaculação precoce. Provavelmente será algo não planejado; uma ideia instintiva surgida na hora e transformada em texto. Acho que não tenho nem 3 leitores fiéis para planejar algo especial para eles hahaha

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Pará

Quer saber?
Vou-me para o Pará.
Não Belém!
Quem sabe Marabá...

Pegar um trem
Aquele de Carajás!
Queria ontem,
Mas vou já!

Estrada de ferro
Coração de aço
Ar de minério
Me dê um abraço

Meia passagem,
Uma ida.
Meia viagem,
Uma vida.

Ôh Sônia, Ôh Sônia
Preciso te encontrar.
Na Amazônia
Ou qualquer lugar.



segunda-feira, 7 de julho de 2014

História na carne

É preciso ter cicatrizes.

Sim. Digo cicatrizes no sentido real da palavra; de marca de rasgado na pele.
Pessoas com cicatrizes sabem o que é viver intensamente o inesperado. Sabem o que é sentir e guardar literalmente na carne um momento vivido.

As cicatrizes ensinam.

Quem tem cicatrizes tem histórias para contar. Histórias de dor, de aventura, de tristeza ou até de loucura.
Quem tem cicatrizes conhece a impotência de ser surpreendido sem estar pronto para (re)agir.
Quem tem cicatrizes sabe o que é ser imperfeito.
Quem tem cicatrizes sabe até onde pode ir um momento de traquinagem, irresponsabilidade (própria ou alheia) ou irracionalidade.
Quem tem cicatrizes conhece consequências.
Quem tem cicatrizes sabe o que é ter que viver com algo indesejado.

As cicatrizes nos lembram que a vida é feita de batalhas. Nos lembram que viver pode ser perigoso e que estamos a todo o tempo expostos a riscos. Elas nos tornam um pouco menos vaidosos fisicamente, com menos pudor; mais flexíveis em aceitar as coisas da vida.

Minha primeira cicatriz de destaque foi adquirida aos 07 anos de idade; após um momento de molecagem na escola. Um corte na face; lembrança de 05 pontos levados. Na época, eu perguntava à minha mãe se quando eu crescesse a marca ia desaparecer da minha pele. De alguma forma, aquele marca que só eu tinha me incomodava, pois me fazia diferente; e tudo o que não se quer aos 07 anos de idade é ser diferente dos amigos.

Fui crescendo a acumulando mais marcas e desencanando dessa neura com as cicatrizes. Fui percebendo que elas são parte da minha história, assim como as 27 estrelas de nossa bandeira nacional. Não há graça em uma vida sem marcas; registros.

Morrer sem cicatrizes, deve ser como morrer sem ter corrido riscos, ou seja, morrer sem ter vivido. Ou então (isso me veio à cabeça neste exato momento), pode ser um símbolo de vitória; algo como conseguir sair ileso de uma corrida maluca na qual praticamente todos se machucam.

Para mim, a primeira opção faz mais sentido.

Prefiro os heróis que saem do campo de batalha com marcas da vitória conquistada, e não aqueles que vencem ilesos. Por quê? Porque pra mim, ter cicatrizes é um símbolo de humanidade, de imperfeição. Adquirir cicatrizes, no meu sentir, é expor a todos sua condição humana, de "gente como a gente", que sofre, luta, e, de algum jeito, vence.

Me sinto, de alguma forma, mais à vontade com alguém que, como eu, carrega um rasgado na cara. "É gente de carne", penso eu de maneira meio inconsciente.

De certa forma, agradeço a Deus por ter vivido cada cicatriz que carrego em minha pele. Agradeço pela oportunidade de expor a todos a minha imperfeição, a minha fragilidade como homem.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Amélie

Hoje vi um filme bem novo. Deve ter só mais de uma década que foi lançado... hahaha
Da série coisas que se faz quando se está de férias.

Le fabuleux destin d' Amélie Poulain (O fabuloso destino de Amélie Poulain)

Conhecem? Imagino que quase todo mundo já teve a oportunidade de ver esse filme na última década. Por todos esses anos tive uma curiosidade inexplicável de ver esse filme; um fascínio anormal. Até mesmo algumas músicas da trilha sonora eu já tinha baixado da internet, mesmo sem ver a obra.


A primeira impressão? Uma obra delicada. Extremamente delicada, aliás. Um filme tão delicado quanto sua protagonista. Cada mínimo detalhe, cada personagem, tudo muito bem trabalhado. Por certo, para quem curte filmes mais objetivos, "O fabuloso destino de Amélie Poulain" é um filme chato, arrastado. De fato, é um filme meio paradão. Mas esse paradão é justamente um reflexo do modo de vida dos personagens da obra. 

Aí é que está o grande charme dessa película: os personagens. Seres comuns. Pessoas normais. Mas tão normais que parecem exóticos. É exatamente isso que a apresentação de cada personagem, dizendo o que eles gostam e detestam parece mostrar. Mostra que seres comuns, na sua intimidade, gostam de coisas incomuns, como enfiar a mão bem fundo em um saco de grãos, mas detestam coisas triviais, como que seus dedos enruguem após um banho quente. Pessoas comuns são apresentadas como se fossem excêntricas. É como se a obra quisesse dizer que, de alguma forma, mesmo as pessoas mais "normais" possuem suas "loucuras".

Amélie é uma menina de vida sem graça. Como tantas pessoas que cruzam conosco todos os dias. Uma menina de trajes simples, de beleza simples e de agir comum. Até que um acontecimento incomum, muda todo o seu destino. Na verdade, não é o destino dela que muda ao encontrar uma caixinha escondida em um buraco de seu quarto, mas o jeito dela conduzir a vida e, consequentemente, de construir seu destino. A personagem passa a fazer coisas incomuns. A fugir do óbvio.


Não consegui segurar as risadas com as traquinagens de Amélie com o quitandeiro e, sobretudo, com seu próprio pai. É hilária a história das viagens do anão de jardim!

É interessante notar que ao mudar sua forma de agir no dia a dia, Amélie passa a alterar a vida de todas as pessoas comuns que estão ao seu redor. Ela passa a produzir novidades, boas e ruins, na vida de todos eles. Passa a tira-los do costume. Tira-lhes do conforto, do marasmo. Mas ao mesmo tempo que muda a vida de todos, Amélie segue mantendo-se omissa em relação aos destinos de sua vida. Não se decide sobre sua vida afetiva. É contraditório. Ela rompe a inércia em direção ao rapaz que lhe atrai, mas quando consegue coloca-lo na sua zona de influência, quase deixa, por inércia, escapar a possibilidade de se relacionar com ele. Ela o conquista com suas condutas de ousadia, porém foge do contato, da relação amorosa, quando percebe que o conquistou.


Amélie tem coragem de lançar novas cores sobre a vida de todos, mas não tem coragem de iluminar sua própria vida. É intrigante. Ela é uma menina boba e atrevida ao mesmo tempo. O mundo precisa de mais meninas como Amélie. Na verdade, acho que devem existir muitas, mas elas devem estar escondidas por aí, ainda se escondendo da vida, dos contatos e dos relacionamentos. Aliás, se eu achar uma "Amélie" que fale francês, eu caso com ela sumariamente. Como é doce e agradável ouvir uma mulher falando francês...

E a atriz? Nunca tinha ouvido falar dela antes, contudo, preciso reconhecer que ela é de uma beleza apaixonante. Beleza simples. Em geral não acho bonito mulheres de cabelo curto como o dela, mas consegui abrir uma exceção. Não sei porque, mas eu achei o rosto da atriz muito igual ao da Catherine Zeta-Jones mais nova. Eu sei, elas não se parecem...

      
                                             Catherine                                          Audrey Tautou

Voltando à personagem, Amélie é fabulosa. Aliás, todos os personagens são fabulosos. Pessoas normais, de vida chata e sem graça até o dia que Amélie começa a criar novidade na vida deles. E aí fica a grande mensagem do filme. A vida é cheia de pontos de conforto. De momentos em que escolhemos não se arriscar e se entregar ao comodismo das coisas que se repetem e não nos exigem novas respostas e atitudes. E os anos passam dessa forma repetitiva e só depois vemos o quanto desperdiçamos. Pessoas normais tendem a ser vegetais, a perguntar "tudo bem" sem realmente se importar com a resposta; a dizer que o tempo está quente só para não ter que movimentar uma conversa de verdade.

"O fabuloso destino de Amélie Poulain" é um filme de história delicada. Que nos toca com sutileza se nos dispormos a analisar cada pequeno detalhe da história. Aliás, são muitos os pequenos detalhes que tornam o filme algo que foge ao roteiro comum do que costumam ser as películas românticas.

Amélie nos convida à vida. A nos expormos um pouco mais. A sairmos de dentro da concha e a nos atirar com ousadia para construirmos nossos próprios destinos fabulosos.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Justiça nos dentes

Quando recebi uma mensagem pelo whatsapp no meio da tarde dizendo que Luisito Suárez havia mordido alguém mais uma vez, pensei que fosse brincadeira. Levei um susto ao chegar em casa e ver que de fato era verdade. Não fazia o menor sentido uma mordida naquelas circunstâncias (não que em outras circunstâncias fizesse algum sentido).


Por um momento tive pena. Pena do atleta que há pouco mais de 1 mês estava em uma cadeira de rodas e fora da Copa do Mundo, mas que deu seu máximo para conseguir entrar em campo e ajudar sua seleção no momento que ela mais precisava dele. Ele iria do céu ao inferno. Eu tinha certeza disso. De herói da classificação a vilão.

Olhando a mordida dada por ele, não achei que foi AQUELA mordida. Italianos são sempre muito dramáticos. Sei lá, achei muito escândalo para pouco dente. Mas por outro lado, foi uma mordida. Um exemplo ruim em uma ocasião para lá de inadequada. Poucas coisas neste planeta têm tanta audiência quanto um jogo de Copa do Mundo. Logo, poucas coisas ganham tanta publicidade quanto algo feito durante uma partida de uma Copa do Mundo.

Um péssimo exemplo. Para as crianças que estão descobrindo a magia do futebol. Um péssimo exemplo no esporte que é capaz de parar guerras. Uma conduta errada no momento mais errado possível. Um mau exemplo visto por milhões de cabeças.

Normal haver uma punição a Luisito. Não se pode deixar impune uma conduta tão fora do mundo do futebol como uma mordida no adversário.

Mas aí começa a festa.


Um monte de gente defendendo Luisito. Como esse senhor da foto, que deu ao mundo o bom exemplo de ser expulso de uma Copa do Mundo por ter sido flagrado no exame antidoping em plena competição.

Sai a punição: quatro meses fora dos gramados e suspensão de nove jogos oficiais pela seleção uruguaia. Pesada? Pela praticamente inexistente lesão ao agredido, por certo a punição se mostra exacerbada. Mas como já disse antes, o ato de Luisito, em uma Copa do Mundo, tem um efeito muito mais nocivo para o futebol como esporte global. Quantas pessoas viram essa cena? Quantas pessoas não irão de alguma forma assimilar essa conduta como algo normal no futebol? Além disso, essa foi nada mais nada menos que a terceira mordida de Suárez contra adversários. Uma pena leve, por certo, não teria muito efeito sobre Luisito.

Mas eis que entra em cena o mundo latino. Digo latino porque não vi a imprensa europeia questionando muito a pena de Suárez. Porém, o mundo latino, viu a punição como quase uma pena de morte. Aí não pude deixar de pensar, como gostamos de ser coniventes com os "pequenos infratores" neste lado do mundo.

"Ah, nem é crime. É só uma contravenção penal."
"Ah, a sociedade aceita. Não dá pra dizer que seja ilegal."
"Ah, é uma mentirinha de leve."

Quem nunca ouviu algo assim por essas bandas? Por que tanta tolerância com as pequenas delinquências? Ah, porque são pequenas, ora! Mas se fosse assim, elas então nem deveriam ser consideradas delinquências. No meu trabalho, tenho a oportunidade de sentir pena de alguns acusados, mas sempre que me pego tendo essa recaída, me pergunto: estou sendo justo com aqueles de quem não senti pena? Em outros termos, ou se sente pena de todo mundo ou não se sente pena de ninguém. É meio radical? Pode ser. Mas dessa forma, se pode ter uma interpretação menos subjetiva das normas.

Eu senti pena de Luisito, como já disse anteriormente. Mas logo depois não pude deixar de considerar que ele errou e mereceu ser punido exemplarmente. Um histórico de três mordidas, sendo uma delas em uma Copa do Mundo, para milhões de telespectadores, não pode passar em branco. Não no mundo europeu. Já nesse nosso mundo onde quem "erra de leve" tem o mesmo tratamento que quem "faz o certo", a punição de Suárez foi um escândalo de cruel. 

Não estou exagerando. A título de exemplo, cito que torcedores do Corinthians mataram um jovem boliviano com um sinalizador durante uma partida de futebol e o time sequer foi desclassificado da competição pela Confederação Sul Americana de Futebol. A "pesada" punição foi ter que fazer alguns jogos em casa sem a presença da torcida e de não poder ter torcedores seus em jogos fora de casa. Na Europa, na época das brigas de torcida, os times  ingleses foram proibidos de jogar a principal competição de futebol daquele continente por cinco anos.

Quer outro exemplo? Neste ano, torcedores de um time peruano imitaram sons de macaco todas as vezes que o jogador Tinga, do Cruzeiro, tocava na bola. Punição ao clube: multa de US$ 12 mil. Sim. Uma multa ridícula para punir atos de racismo! É assim que são as punições na América do Sul. Por isso somos tão simpáticos a Suárez. Achamos tão normal mordidas, socos, xingamentos e empurrões. Levamos a sério aquela frase racista de que "futebol é um esporte de nobres praticado por selvagens".

Ainda temos muito o que aprender com os europeus em alguns aspectos... Acho que Luisito nunca mais vai morder alguém dentro de campo. A pena aplicada, por certo, terá cumprido seu papel punitivo e de prevenção.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Ela está linda

Acharam que eu ia deixar acabar a Copa do Mundo sem escrever nada sobre ela? De jeito nenhum! Acho que em 2010 escrevi mais sobre a Copa porque não havia bom futebol para assistir. Lembra da mulher bonita que acordou toda zuada em 2010, toda descabelada e feia? http://meuspensamentosabstratos.blogspot.com.br/2010/07/acho-que-acabou-ne-odeio-despedidas.html

Pois então! Aquela mulher acordou feia em 2010, mas está linda em 2014. Que grata surpresa é 2014. Gols, gols e mais gols. Até agora, como viciado em futebol, não tenho o que reclamar. O retorno do bom futebol depois de uma Copa do Mundo de bosta como em 2010 é realmente algo para se comemorar.

Aliás, a eliminação precoce da Espanha é um reflexo disso. Já em 2010 (vide link acima) eu tinha alertado que o futebol da então campeã mundial era uma fraude. Tiki-Taka para mim sempre foi sinônimo de não-futebol, de enrolação, de falta de objetividade e de, acima de tudo, falta de gols. Meus filhos, futebol é bola na rede, não há nada no futebol como o grito de GOL. Que os deuses do futebol permitam que esse Tiki-Taka, Titi-Caca, Titica, ou sei lá o quê, nunca mais dê as cartas em uma Copa do Mundo.


Neste exato momento estou escrevendo este texto em um caderno enquanto assisto a Costa Rica vencendo a Itália e cravando uma inesperada classificação para a segunda fase da Copa do Mundo em um grupo no qual todos os experts diziam, antes de a Copa começar, que a briga da Costa Rica seria para não ser goleada por muitos gols pelas três seleções campeãs mundiais de seu grupo (Inglaterra, Itália e Uruguai). Quem esperava por uma Costa Rica tão atrevida? Aposto que nem eles mesmos.

Nesta Copa do Mundo haverá surpresas, senhores! Graças a Deus! Os grupos ficaram muito desequilibrados em razão de times sem muita tradição como Bélgica, Suíça e Colômbia terem sido colocadas como cabeças de chave e de os sorteios terem propiciado a formação de alguns grupos só com seleções medianas e fracas. Isto é o futebol! Talvez o esporte mais imprevisível de todos.

Estou com pouco tempo e escrevendo no puro ímpeto, sem ideias fixas e organizadas. No puro coração! Mas mesmo nessa correria preciso dizer algumas coisas pontuais: 

Que orgulho saber que ninguém lembrará da nossa Copa como aquela em que bolas entraram e o juiz não viu. Já era hora de haver um sistema inteligente gol/não gol. O gol é o que há de mais importante no esporte mais popular do planeta, era uma indecência times serem eliminados ou perderem títulos mundiais (como a Alemanha em 1966) porque não havia tecnologia para dizer se uma bola cruzou a linha do gol ou não.


Um ponto negativo desta Copa, no entanto, são as contusões que tiraram dela jogadores como Ribéry e Falcao García. Outro ponto negativo são os pavorosos jogos de 13 horas! Quem foi o gênio? Futebol às 13 horas em Recife/PE. É brincadeira... Pode ter certeza que vai ter time europeu eliminado "antes da hora" que vai querer reclamar disso - em parte com razão, penso eu.

Mas aí, os ingleses tinham que se fuder mesmo. Povo estranho. A imprensa deles reclamou tanto de Manaus, falando mal da temperatura, da umidade, da distância, do gramado, dos perigos da violência e das doenças... Como se fosse um paraíso aquela ilha eternamente chuvosa e fria, de gente gelada, onde torcedores bêbados se matavam até meados dos anos 1980 sem qualquer motivo e onde um eletricista estrangeiro é confundido com terrorista e morto pela polícia...

Parabéns, ingleses! Desde 1966 vocês não chegam nem em final de Copa do Mundo, seja em solo "civilizado" ou na "selva". Desde 1966 vocês não assustam ninguém, sendo que nos últimos 15 anos suas esperanças se resumiam sobretudo ao futebol de um jogador mais conhecido pela beleza do que pelo futebol. Vocês reclamaram muito em 2014 e esqueceram de jogar futebol.

Viva a Amazônia! Ela mereceu receber jogos de Copa. afinal, também é um pedaço (um dos mais importantes, diga-se de passagem) do Brasil, bem como é o pulmão do mundo. Uma Copa no Brasil sem a Amazônia não seria uma Copa legitimamente brasileira!

Viva a Costa Rica! Ela acabou de vencer outra seleção campeã do mundo e de se classificar para as Oitavas de Final mesmo estando no "grupo da morte". Ah, esse resultado acaba de eliminar em definitivo os ingleses.

Isso é o futebol, bebê!

sábado, 24 de maio de 2014

Desafio

Rimas
Pra você!
Aliás!
No usted.

Não começa com P.
Nem termina com A.
O que quero dizer?
Deixa pra lá...

Hoje eu rimo.
Ontem xinguei.
Agora só hino,
Coisa de rei.

Quando tudo é wild
Falta soñar.
É preciso ser humilde,
Puxar o ar.

Chega de arte!
Depois melhora.
Perdi a classe
Deu a hora!

Por quê?

Às vezes me pergunto
Por quê?
Mas sabe?
Melhor não responder.

Dá vergonha
Lembrar,
Pensar,
Explicar.

O que se faz
Não se comenta.
Talvez por reais
Vire uma sentença.

Antes do agora
Poderia ser o depois.
E o passado?
Reparte em dois.

Um pra levar.
Outro pra ficar.
Um pra lembrar.
Outro pra queimar.

Por quê?
Volte ao começo.
No passado
Era só texto.

domingo, 11 de maio de 2014

Farol


Quanto custa?
Não há como pagar.
Quanto pode?
Não quero incentivar.

Não há preço
Que paga o que se perdeu.
Nem tempo
Que apaga o que se vendeu.

A beleza?
Tem preço.
A alma?
Um adereço.

O corpo,
Você dá.
O espírito,
Como comprar?

Uma prece
Na tentação.
Uma penitência
Por perdão.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

The Champion of the World


Hurricane

Pistol shots ring out in the ballroom night
Enter Patty Valentine from the upper hall
She sees the bartender in a pool of blood
Cries out, "My God, they've killed them all! "
Here comes the story of the Hurricane
The man the authorities came to blame
For somethin' that he never done
Put in a prison cell, but one time he could-a been
The champion of the world

Three bodies lyin' there does Patty see
And another man named Bello, movin' around mysteriously
"I didn't do it, " he says, and he throws up his hands
"I was only robbin' the register, I hope you understand
I saw them leavin', " he says, and he stops
"One of us had better call up the cops. "
And so Patty calls the cops
And they arrive on the scene with their red lights flashin'
In the hot New Jersey night

Meanwhile, far away in another part of town
Rubin Carter and a couple of friends are drivin' around
Number one contender for the middleweight crown
Had no idea what kinda shit was about to go down
When a cop pulled him over to the side of the road
Just like the time before and the time before that
In Paterson that's just the way things go
If you're black you might as well not show up on the street
'Less you wanna draw the heat

Alfred Bello had a partner
and he had a rap for the cops
Him and Arthur Dexter Bradley were just out prowlin' around
He said, "I saw two men runnin' out
they looked likemiddleweights
They jumped into a white car with out-of-state plates. "
And Miss Patty Valentine just nodded her head
Cop said, "Wait a minute, boys, this one's not dead"
So they took him to the infirmary
And though this man could hardly see
They told him that he could identify the guilty men

Four in the mornin' and they haul Rubin in
Take him to the hospital and they bring him upstairs
The wounded man looks up through his one dyin' eye
Says, "Wha'd you bring him in here for? He ain't the guy! "
Yes, here's the story of the Hurricane
The man the authorities came to blame
For somethin' that he never done
Put in a prison cell, but one time he could-a been
The champion of the world

Four months later, the ghettos are in flame
Rubin's in South America, fightin' for his name
While Arthur Dexter Bradley's still in the robbery game
And the cops are puttin' the screws to him
lookin' for somebody to blame
"Remember that murder that happened in a bar? "
"Remember you said you saw the getaway car? "
"You think you'd like to play ball with the law? "
"Think it might-a been that fighter
that you saw runnin' that night? "
"Don't forget that you are white. "

Arthur Dexter Bradley said, "I'm really not sure. "
Cops said, "A poor boy like you could use a break
We got you for the motel job
and we're talkin' to your friend Bello
Now you don't wanta have to go back to jail
be a nice fellow
You'll be doin' society a favor
That sonofabitch is brave and gettin' braver
We want to put his ass in stir
We want to pin this triple murder on him
He ain't no Gentleman Jim. "

Rubin could take a man out with just one punch
But he never did like to talk about it all that much
It's my work, he'd say, and I do it for pay
And when it's over I'd just as soon go on my way
Up to some paradise
Where the trout streams flow and the air is nice
And ride a horse along a trail
But then they took him to the jail house
Where they try to turn a man into a mouse

All of Rubin's cards were marked in advance
The trial was a pig-circus, he never had a chance
The judge made Rubin's witnesses
drunkards from the slums
To the white folks who watched
he was a revolutionary bum
And to the black folks he was just a crazy nigger
No one doubted that he pulled the trigger
And though they could not produce the gun
The D. A. said he was the one who did the deed
And the all-white jury agreed

Rubin Carter was falsely tried
The crime was murder "one, " guess who testified?
Bello and Bradley and they both baldly lied
And the newspapers, they all went along for the ride
How can the life of such a man
Be in the palm of some fool's hand?
To see him obviously framed
Couldn't help but make me feel ashamed to live in a land
Where justice is a game

Now all the criminals in their coats and their ties
Are free to drink martinis and watch the sun rise
While Rubin sits like Buddha in a ten-foot cell
An innocent man in a living hell
That's the story of the Hurricane
But it won't be over till they clear his name
And give him back the time he's done
Put in a prison cell, but one time he could-a been
The champion of the world
(fonte: http://www.vagalume.com.br/bob-dylan/hurricane-traducao.html)


Foi assim que Bob Dylan cantou uma das histórias mais dramáticas que alguém já pôde ter vivido neste mundão de meu Deus. A letra da música, por si só, já conta tudo (aliás, Bob Dylan, mais uma vez, deu aula e mostrou que sim, é possível escrever música em inglês com sentido). Por isso, não quero usar este espaço para contar a história toda, até porque há milhares de sites na internet que trazem versões bem completas dela. O que eu quero é fazer uma homenagem a Rubin "Hurricane" Carter, o homem, o negro, o atleta, que ficou 19 anos preso pela prática de um homicídio que não cometeu.

Virou filme. "The Hurricane" ("Hurricane - O furacão", em português). Foi interpretado por Denzel Washington lá pelos idos dos anos 1990. Vi esse filme em uma noite de sábado no SBT, no auge dos meus 13 ou 14 anos, mas nunca mais esqueci desta história. Como um homem pode ficar preso por 19 anos por um crime que não cometeu? Mesmo sendo um talentoso boxeador que disputou um título mundial de boxe? Mais um negro vítima da racista sociedade americana dos anos 1960.

Rubin Carter não perdeu apenas anos de sua vida atrás das grades. Perdeu a chance de ser um grande campeão do boxe. Quem sabe a chance de ter sido um campeão do mundo. Mas mais do que isso, carregou o rótulo de assassino por anos atrás das grades, condenado por um sistema jurídico racista. Isso acaba com qualquer homem, com sua dignidade como pessoa. Mas ele venceu. A história da incrível injustiça sofrida por ele movimentou a opinião pública americana, gerou manifestações de apoio de celebridades e foi eternizada em uma música por Bob Dylan...

Em entrevista dada em 2011, Rubin Carter disse: "Eu não iria desistir. Não importa que eles me condenassem a três vidas na prisão, eu não iria desistir. Só porque um juri de 12 pessoas mal informadas me considera culpado, isso não significa que eu sou culpado. E porque eu não era culpado, eu me recusei a agir como um culpado." (http://oglobo.globo.com/esportes/morre-ex-lutador-de-boxe-rubin-carter-12250204#ixzz3091LmmZB)

Pra mim, ele foi um campeão do mundo, ele venceu o mundo, como um legítimo hurricane. Aliás, isso me lembra uma passagem da Bíblia bem assim: "Neste mundo vocês terão aflições, mas tenham coragem; eu venci o mundo." (Jo 16,33). Essa é a minha singela homenagem a Rubin "Hurricane" Carter, o homem que morreu de câncer de próstata em 20 de abril de 2014, aos 76 anos, mas que nunca deverá ser esquecido por aqueles que militam por sistemas jurídicos efetivamente justos, por igualdade racial e, acima de tudo, pela defesa da dignidade e da vida humana.


 hurricane... Como todos os fenômenos da natureza que se vão, você deixou suas marcas por onde passou.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Quantos mais?

Quantos mais precisarão vagar sem sul nem norte pelas ruas?
Quantos mais precisarão viver como mortos?
Quantos mais precisarão ser passageiros no próprio corpo?
Quantos mais precisarão acender cachimbos na escuridão?

CRACK

Quantos mais precisarão se tornar esqueletos de carne?
Quantos mais precisarão transformar fios de cobre em pedra?
Quantos mais precisarão fazer filhos sem ninguém para criar?
Quantos mais precisarão furtar para se viciar?

CRACK

Quantos mais precisarão se vender para fumar?
Quantos mais precisarão mexer no lixo para se alimentar?
Quantos mais precisarão ir para a cadeia para não mudar?
Quantos mais precisarão se internar para não se tratar?

CRACK

Quantos mais precisarão ter abstinência para pirar?
Quantos mais precisarão se agredir na madrugada para incomodar?
Quantos mais precisarão matar sem se lembrar?
Quantos mais precisarão morrer para se salvar?

CRACK

Quantos mais deixaremos?

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Que nesta páscoa possamos refletir sobre a vida, sobre quantas estamos dispostos a salvar com nossas próprias vidas, sobre quantos "mortos" estamos dispostos a ressuscitar.

domingo, 16 de março de 2014

Por aí

E aí? Ainda tem alguém aí? Tem. Eu sei que sempre tem. Mas se não tiver eu finjo que tem e escrevo assim mesmo. Quem não escreve desaparece. Escrevo por vocês de quem não tenho mais notícias.

Hoje eu tô escrevendo só pra fazer hora até as 03 da manhã, horário do GP da Austrália. Sim, eu tenho alguns vícios; alguns bem estranhos por sinal, como a tal Fórmula 1. Resquício dos tempos em que uma das minhas poucas diversões era ver TV. Aprendi muitas coisas na TV (inúteis e úteis) e em grande parte por causa dela sou capaz de conversar com alguma desenvoltura sobre quase tudo, sem passar vergonha. Viciei em quase tudo que passa na TV, mas aos poucos fui desviciando em algumas coisas, mas a tal da Fórmula 1 eu nunca consegui. Adoro essa relação "homem-super máquinas" no limite entre o erro e o acerto. Mas não é disso que quero escrever aqui.


Eu tenho uma certa atração pela morte. Não tenho vontade de morrer ou algo assim. Tenho uma relação de curiosidade, aquela que temos quando criança em relação a coisas que os adultos não gostam de falar na nossa presença. Talvez o que me atrai nela é saber que ninguém tem uma resposta inequívoca para o que acontece depois dela. É justamente por isso que não consigo conceber que cientistas digam que religião é algo sem pé nem cabeça quando nem a dona ciência (dona da verdade) sabe dizer o que acontece depois da morte. Teorias por teorias, tenho direito de escolher a teoria religiosa e não a científica.

Mas voltando. No meu trabalho tenho a oportunidade de ver em fotos, com alguma frequência, gente morta violentamente. Em geral não tenho problemas com sangue, pedaços de corpo etc (sinto um pouco de agonia só com corpos em decomposição). Pra falar a verdade, sinto um pouco de curiosidade em ver essas fotos; não se trata de sadismo ou prazer, mas curiosidade, vontade de entender como foi e porque ficou daquele jeito; algo meio clínico.

Mas essa semana vi fotos de um caso que me marcou muito. Fotos de um cara de 21 anos morto, enquanto estava trabalhando em um estabelecimento, por um disparo de arma de fogo dado por um moleque de 14 anos. Não. Não vou falar sobre redução da maioridade penal. Não sou a favor dessa redução, pois essa alteração legal, caso aprovada, seria algo que só serviria pra enxugar gelo, como nossa legislação já faz com muitas outras questões. Mas isso é tema pra outra postagem.

Ver as fotografias daquele cara de 21 anos cercado por uma enorme poça de sangue me fez sentir pena. Muita pena daquele cara. Um jovem como eu, como você, que teve a vida roubada em segundos. Um cara que tinha uma aliança de compromisso em um dos dedos e o sonho de estudar para ter seu próprio negócio (segundo familiares). Quanta coisa aquele jovem poderia ter feito na vida, poderia ter vivido. Enquanto via aquelas fotos eu não conseguia parar de pensar nisso. Nunca antes tinha ficado tão envolvido com a vítima de uma foto.

Somos passageiros neste mundo. Nada é mais incerto do que viver. Uma esquina virada na hora errada, uma pessoa mal intencionada do outro lado e tudo o que você fez por anos pode sumir em uma poça de sangue. Mais rápido do que a leitura deste parágrafo.


Que morte besta, meu Deus! Um moleque de 14 anos aprendiz de Zé Pequeno "sem nada a perder" (na cabeça dele) e um cara de 21 anos cheio de sonhos na mesma cena. O diretor não deveria permitir. Mas aconteceu e continuará acontecendo muitas outras vezes. Uma cena de improvisação, sem roteiro pré-definido. E o pior, quem mata, em boa parte das vezes, não tem a menor consciência do que isso significa. Matar. Eliminar sumariamente do jogo, sem explicações e chance de retorno. Infelizmente, muitas vezes quem mata não entende a gravidade do que está fazendo e nunca sequer parou para refletir sobre as consequências desse ato para quem sofre. Dada a naturalidade com que matam, devem acreditar em reencarnação, só pode. Devem ter a certeza de que a vida recomeça em outro corpo. Não tem outra explicação para agirem com tamanha naturalidade.

E o pior é que castigar o criminoso levando-o à cadeia não tem, na maioria das vezes, a capacidade de despertar qualquer consciência nesse sentido. Acho que matar alguém deve ser um caminho sem volta. Depois de matar o primeiro, acho pouco provável que quem matou vá sentir algum remorso nas próximas mortes que causar. Deve ser algo como "já tô no inferno, então vou abraçar o capeta, foda-se. Já que matei um, se precisar posso matar de novo." Imagino que algum tipo de peso de consciência deve existir só no começo, depois a coisa flui naturalmente.

Não acho que levar à cadeia como punição vá mudar a cabeça do moleque de 14 anos, franzino, de meio metro, que matou o jovem de 21 anos. Pra mim, é preciso "tratamento de choque". Penas criativas. Por exemplo, condenar o menor autor do crime a assistir, na presença de policiais, durante meses, os primeiros socorros de feridos a bala na emergência de hospitais, ter que frequentar o IML durante perícias em mortos, assistir a enterros, assistir a julgamentos de homicídios por jurados para entender as consequências penais do ato. Quem se sente pronto para matar, tem que estar pronto para ver as múltiplas consequências do que fez sob vários ângulos. Mandar direto para a cadeia não ensina nada. É preciso fazer ver com os próprios olhos, fazer o adolescente sentir o peso da responsabilidade que a vida lhe atribui por seus atos, e se ele, ainda assim, achar normal matar alguém, aí, não é mais caso de só prisão, pois, por certo, ele tem algum distúrbio psicológico.

A vida me fez cruzar com aquelas fotos em uma manhã de março e me fez perceber, mais uma vez, que sou um sortudo por tê-la. Ninguém sabe com certeza o que há pro lado de lá do muro. Céu, inferno, outro corpo esperando para ser ocupado, virar nada... Cabe a cada um escolher a teoria que lhe convencer melhor. A vida é incerta nas suas nuances, porém é uma certeza quando se está vivo. Já a morte é dúvida. Apesar disso, paradoxalmente, a única certeza que temos é a de que vamos um dia morrer.

Então, que saibamos viver, porque nunca estamos prontos para morrer.