domingo, 16 de março de 2014

Por aí

E aí? Ainda tem alguém aí? Tem. Eu sei que sempre tem. Mas se não tiver eu finjo que tem e escrevo assim mesmo. Quem não escreve desaparece. Escrevo por vocês de quem não tenho mais notícias.

Hoje eu tô escrevendo só pra fazer hora até as 03 da manhã, horário do GP da Austrália. Sim, eu tenho alguns vícios; alguns bem estranhos por sinal, como a tal Fórmula 1. Resquício dos tempos em que uma das minhas poucas diversões era ver TV. Aprendi muitas coisas na TV (inúteis e úteis) e em grande parte por causa dela sou capaz de conversar com alguma desenvoltura sobre quase tudo, sem passar vergonha. Viciei em quase tudo que passa na TV, mas aos poucos fui desviciando em algumas coisas, mas a tal da Fórmula 1 eu nunca consegui. Adoro essa relação "homem-super máquinas" no limite entre o erro e o acerto. Mas não é disso que quero escrever aqui.


Eu tenho uma certa atração pela morte. Não tenho vontade de morrer ou algo assim. Tenho uma relação de curiosidade, aquela que temos quando criança em relação a coisas que os adultos não gostam de falar na nossa presença. Talvez o que me atrai nela é saber que ninguém tem uma resposta inequívoca para o que acontece depois dela. É justamente por isso que não consigo conceber que cientistas digam que religião é algo sem pé nem cabeça quando nem a dona ciência (dona da verdade) sabe dizer o que acontece depois da morte. Teorias por teorias, tenho direito de escolher a teoria religiosa e não a científica.

Mas voltando. No meu trabalho tenho a oportunidade de ver em fotos, com alguma frequência, gente morta violentamente. Em geral não tenho problemas com sangue, pedaços de corpo etc (sinto um pouco de agonia só com corpos em decomposição). Pra falar a verdade, sinto um pouco de curiosidade em ver essas fotos; não se trata de sadismo ou prazer, mas curiosidade, vontade de entender como foi e porque ficou daquele jeito; algo meio clínico.

Mas essa semana vi fotos de um caso que me marcou muito. Fotos de um cara de 21 anos morto, enquanto estava trabalhando em um estabelecimento, por um disparo de arma de fogo dado por um moleque de 14 anos. Não. Não vou falar sobre redução da maioridade penal. Não sou a favor dessa redução, pois essa alteração legal, caso aprovada, seria algo que só serviria pra enxugar gelo, como nossa legislação já faz com muitas outras questões. Mas isso é tema pra outra postagem.

Ver as fotografias daquele cara de 21 anos cercado por uma enorme poça de sangue me fez sentir pena. Muita pena daquele cara. Um jovem como eu, como você, que teve a vida roubada em segundos. Um cara que tinha uma aliança de compromisso em um dos dedos e o sonho de estudar para ter seu próprio negócio (segundo familiares). Quanta coisa aquele jovem poderia ter feito na vida, poderia ter vivido. Enquanto via aquelas fotos eu não conseguia parar de pensar nisso. Nunca antes tinha ficado tão envolvido com a vítima de uma foto.

Somos passageiros neste mundo. Nada é mais incerto do que viver. Uma esquina virada na hora errada, uma pessoa mal intencionada do outro lado e tudo o que você fez por anos pode sumir em uma poça de sangue. Mais rápido do que a leitura deste parágrafo.


Que morte besta, meu Deus! Um moleque de 14 anos aprendiz de Zé Pequeno "sem nada a perder" (na cabeça dele) e um cara de 21 anos cheio de sonhos na mesma cena. O diretor não deveria permitir. Mas aconteceu e continuará acontecendo muitas outras vezes. Uma cena de improvisação, sem roteiro pré-definido. E o pior, quem mata, em boa parte das vezes, não tem a menor consciência do que isso significa. Matar. Eliminar sumariamente do jogo, sem explicações e chance de retorno. Infelizmente, muitas vezes quem mata não entende a gravidade do que está fazendo e nunca sequer parou para refletir sobre as consequências desse ato para quem sofre. Dada a naturalidade com que matam, devem acreditar em reencarnação, só pode. Devem ter a certeza de que a vida recomeça em outro corpo. Não tem outra explicação para agirem com tamanha naturalidade.

E o pior é que castigar o criminoso levando-o à cadeia não tem, na maioria das vezes, a capacidade de despertar qualquer consciência nesse sentido. Acho que matar alguém deve ser um caminho sem volta. Depois de matar o primeiro, acho pouco provável que quem matou vá sentir algum remorso nas próximas mortes que causar. Deve ser algo como "já tô no inferno, então vou abraçar o capeta, foda-se. Já que matei um, se precisar posso matar de novo." Imagino que algum tipo de peso de consciência deve existir só no começo, depois a coisa flui naturalmente.

Não acho que levar à cadeia como punição vá mudar a cabeça do moleque de 14 anos, franzino, de meio metro, que matou o jovem de 21 anos. Pra mim, é preciso "tratamento de choque". Penas criativas. Por exemplo, condenar o menor autor do crime a assistir, na presença de policiais, durante meses, os primeiros socorros de feridos a bala na emergência de hospitais, ter que frequentar o IML durante perícias em mortos, assistir a enterros, assistir a julgamentos de homicídios por jurados para entender as consequências penais do ato. Quem se sente pronto para matar, tem que estar pronto para ver as múltiplas consequências do que fez sob vários ângulos. Mandar direto para a cadeia não ensina nada. É preciso fazer ver com os próprios olhos, fazer o adolescente sentir o peso da responsabilidade que a vida lhe atribui por seus atos, e se ele, ainda assim, achar normal matar alguém, aí, não é mais caso de só prisão, pois, por certo, ele tem algum distúrbio psicológico.

A vida me fez cruzar com aquelas fotos em uma manhã de março e me fez perceber, mais uma vez, que sou um sortudo por tê-la. Ninguém sabe com certeza o que há pro lado de lá do muro. Céu, inferno, outro corpo esperando para ser ocupado, virar nada... Cabe a cada um escolher a teoria que lhe convencer melhor. A vida é incerta nas suas nuances, porém é uma certeza quando se está vivo. Já a morte é dúvida. Apesar disso, paradoxalmente, a única certeza que temos é a de que vamos um dia morrer.

Então, que saibamos viver, porque nunca estamos prontos para morrer.

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