domingo, 3 de dezembro de 2017

Gratidão

Esta semana eu me lembrei de um dia muito singular de minha vida; o dia em que quase passei fome. Eram tempos difíceis, eu tinha lá meus 13 anos de idade e, juntamente com minha mãe e um ex-companheiro dela, morava em uma casa alugada. Nesta época, embora o ex-companheiro de minha mãe tivesse emprego, ele quase não ajudava em casa e minha mãe mantinha a casa quase que sozinha, com o dinheiro das unhas que ela fazia até aos domingos.

Mas um dia não deu.

O ex-companheiro da minha mãe, brigado com ela, viajou para trabalhar fora do estado por alguns dias e não deixou nem um puto de um centavo.

Era o último dia da Festa da Penha e eu e minha mãe íamos à missa de encerramento no parque da Prainha. Na hora de sair de casa, minha mãe me disse para beber água antes de sairmos, pois não tínhamos dinheiro para comprar uma garrafinha de água mineral no local da missa, afinal, só tínhamos, sei lá, uns R$ 3,00, e precisávamos comprar pão no dia seguinte.

Naquele dia, eu entendi o que minha mãe, com a delicadeza das mães, quis me dizer simbolicamente. Quis me dizer indiretamente que, diferentemente dos anos anteriores, eu não poderia comer pipoca, cachorro quente ou alguma outra coisa no local da festa, pois a gente não tinha dinheiro e, se nada diferente ocorresse, passaríamos fome nos próximos dias.

Esta lembrança me traz lágrimas nos olhos neste momento.

Talvez este tenha sido o momento mais crítico de minha vida, o momento em que estive mais perto da fome. Mas esta não é uma lembrança só minha. Todos os anos, quando vamos em algum momento à Festa da Penha, mencionamos a lembrança deste dia: do dia que não tínhamos dinheiro para comprar nem água. E estava quente neste dia... Água, só em casa. Lembramos com gratidão, porque no dia seguinte, apareceram clientes como peixes na rede lançada pelos discípulos de Jesus e os R$ 3,00 multiplicaram-se.

Deus e o trabalho de minha mãe nos salvaram da fome. Mas nem todos têm a mesma "sorte". A impotência da fome é desumana, não podemos permitir que alguém ainda viva e morra por algo assim.

Quando fiz Direito, nunca sonhei em ser nada (juiz, promotor, advogado...). Tudo que eu queria era só chegar onde desse para chegar e ter um salário decente. É estranho um jovem estudar para um concorrido vestibular, entrar em uma universidade, sem sonhos profissionais. Enquanto alguns colegas discutiam comissão de formatura, eu não queria nem formar, para não perder minha bolsa estágio de R$ 800,00.

Quando vejo o que conquistei hoje, vejo o quanto fui agraciado por Deus. É verdade que não ganho R$ 10.000,00 por mês, mas ganho um salário que me garante uma vida digna, decente e com conforto. Nunca sonhei ser rico. Sempre sonhei apenas ter alguma segurança financeira, capaz de não me deixar em dúvidas entre comprar uma garrafa de água mineral ou o pão do dia seguinte e capaz de me possibilitar comprar as coisas que realmente preciso sem passar grandes sufocos. E isto Deus me deu e tem me dado.

Quando rezo, geralmente o que mais faço é agradecer e pedir perdão. Não porque eu não tenha coisas a pedir, mas porque eu não consigo começar se não for agradecendo (geralmente pego no sono ainda nesta parte, inclusive).

Mas não agradeço somente os ganhos financeiros. Deus foi muito bom comigo e tem sido! Tenho o mau costume de dizer que chego nos lugares certos, mas nas horas erradas. Uma baita heresia. Sou um agraciado! Seja pela minha saúde, seja pelas oportunidades e conquistas e seja pelas pessoas que Deus sempre colocou em minha vida.

Nunca tive um pai, mas também nunca faltaram pessoas para cuidar de mim, me ajudar de todos os modos que alguém pode ser ajudado. Sempre as pessoas certas e nas horas certas. Sempre. Pessoas que me ofereceram um teto para dormir durante meus estudos; o cobrador que me vigiava quando minha mãe precisava me embarcar sozinho, aos 10 anos de idade, em um ônibus intermunicipal para que eu pudesse estudar; pessoas que me ajudaram a ter uma infância feliz quando minha condição social não me permitia; pessoas que ajudaram a custear os meus estudos; pessoas que me ajudaram a desenvolver-me profissionalmente; e as pessoas que hoje me protegem afetivamente. Muita gente cuidou e ainda cuida de mim. Isto é amor, em sua forma mais pura. Só tenho a agradecer a essas pessoas.

Ainda espero a mulher com quem eu construirei uma família e terei filhos, vivendo a felicidade e o amor. Mas isto acontecerá no tempo certo. Aliás, preciso saber esperar e lidar melhor com esta espera, afinal, o afeto que me cerca, de diferentes maneiras e de diferentes pessoas, já é uma grande graça em minha vida.

Sou um agraciado!

Quando penso racionalmente em meus problemas atuais, vejo o quanto são pequenos. São problemas de "gente branca de olhos azuis". E sempre que me deparo com esta constatação, tomo coragem, perco a ansiedade e me sinto mais forte que o mundo. Nada consegue me irritar, me chatear ou me deixar verdadeiramente preocupado, quando lembro daquele dia que não dava nem para comprar uma garrafa de água mineral. É preciso nunca esquecer, para sempre valorizar o presente.

Não é preciso muito esforço para se considerar um agraciado. Às vezes não damos o devido valor para coisas como ter um teto para abrigar-se, ter um alimento qualquer para matar a fome, ter dinheiro para pagar uma passagem de ônibus, ter saúde, ter água para beber e tomar um banho, ter pessoas que nos querem bem... Precisamos ser mais gratos e não deixar que as dificuldades momentâneas nos tornem incapazes de ver o quanto somos privilegiados e de entender que a vida pode melhorar, apesar dos obstáculos.

Hoje eu estava vendo uma entrevista do Adriano "Imperador", aquele ex-jogador de futebol que desistiu do futebol no auge, que voltou da Europa diretamente para sua comunidade pobre. Ele foi e ainda é muito julgado por isto, como se tivesse feito a escolha mais burra da vida ao optar por andar descalço na "quebrada" onde cresceu, vivendo ao lado de seus familiares e amigos de infância, ao invés de ganhar ainda mais milhões e títulos como jogador de futebol. Ele é um cara que financeiramente pode ter tudo o que quiser, poderia ter ainda mais, mas preferiu não se preocupar com isto em nome de ser feliz na vida. Jogar futebol não o fazia mais feliz. Isto me fez pensar no quanto somos injustos com os "Adrianos" que vemos por aí, por exigir que eles deem às coisas erradas o mesmo peso grande que damos a elas, quando na realidade são os "Adrianos" é que estão dando o peso certo para as coisas que realmente importam na vida. Eles é que estão certos. Eles é que estão felizes, ao passo que nós...

Problematizamos demais a vida. No fim, não precisamos de "muita" coisa para sermos agraciados. Precisamos somente de um mínimo existencial que alimente e mantenha nosso corpo e nossa alma saudáveis e vivos com dignidade.

Isto não quer dizer que não devemos lutar por uma vida ainda melhor, mas que, no fim, isto não tem muito sentido se não formos capazes de sermos instrumentos para que aqueles que nos cercam também possam ter uma vida plena daquilo que realmente importa.

Obrigado, Deus!

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