quinta-feira, 14 de julho de 2011

Homem de meia moral

Não é uma história de ficção.
[01:28 A.M.]

Há algumas poucas horas, enquanto voltava de um aniversário infantil juntamente com minha mãe, vivenciei uma cena inusitada. Enquanto vinhamos rompendo as ruas semi-desertas do Centro de Vila Velha por volta das 22 horas, fomos abordados por um jovem com um cigarro aceso em uma das mãos e calmamente paramos para ouvi-lo sem saber ao certo o que nos esperava. Ele devia ter uns 25 anos, era moreno claro, usava roupas simples, mas não cheirava mal.

- Casal, vocês podem me dá um minuto de atenção? Não sou ladrão; tô indo de São Paulo pra Recife; tô dormindo na pracinha, mas roubaram minhas coisas e minha coberta. Vou ser sincero com vocês: Não tô com fome. Eu quero beber uma cachaça. Vocês têm umas moedas para eu comprar uma garrafa de cachaça?
- Pô, cara. Infelizmente não tenho nada. - respondi
- Tranquilo. Valeu, casal.

De fato eu não tinha nenhum centavo, provável que minha mãe até tivesse algum, mas ela não falou nada. Por um instante eu tive muita vontade de dar dinheiro para ele comprar a cachaça dele. Ok, eu sei... Eu sei que ele ia gastar meu dinheiro com bebida, mas nesse contexto em que vivemos, no qual a sinceridade e a honestidade parecem nada valer, tive vontade de recompensá-lo; recompensar a sinceridade dele com uma garrafa de pinga, afinal, muita gente na situação dele mentiria pedindo uns trocados para comer algo ou até mesmo nos assaltaria por umas moedas. Sei que não devemos agir com honestidade e sinceridade à espera de algo em troca, mas nessa sociedade fudida em que ninguém valoriza bons valores como esses, ser sincero com segundas intenções é um desvio moral pequeno diante de tanta gente agindo com desonestidade por aí. Senti que deveria recompensar a sinceridade do meu amigo desconhecido, afinal, são cada vez mais escassas pessoas assim; quis incentivá-lo a manter sua meia retidão diante de tanta gente corrupta e desonesta.

Faz quase uma semana que não vivo em paz; que não tomo um banho sossegado em meu banheiro; que subo todos os dias no telhado para ver o quanto ainda resta de água nas caixas d'água do prédio; que preciso economizar água até na descarga do vaso sanitário; que preciso tomar banho com os pés numa banheira pra economizar água; que preciso andar com baldes dentro de casa; que preciso segurar a vontade de mijar e de cagar; que preciso sair da intimidade da minha casa para tomar um banho na casa dos outros; que preciso sair às ruas com um banho mal tomado e com os dentes mal escovados. Nesse período com problemas de abastecimento de água, sinto que perco um pouco da minha dignidade e da minha moral em cada gota de água que me falta; sinto que perco um pouco da minha disposição em peitar o mundo podre que está lá fora. Um homem de meia dignidade e de meia moral se cala diante do errado e até incentiva o moralmente duvidoso. De que me valeu pagar todas as contas de água em dia, com honestidade, se nem água para as necessidades mínimas posso ter? Se nem a garantia de que usam meu dinheiro honestamente para a boa manutenção da nossa trintenária rede de abastecimento de água eu tenho? Enquanto eu, que pago em dia a conta de água, pego um balde de água na cozinha para dar descarga, economizar a água da caixa d'água do banheiro e tomar um banho meia-boca depois, em algum lugar um corrupto bebe um Johnnie Walker com meu dinheiro. Melhor então dar umas moedas para o cara sincero beber uma pinga e dormir bem.

Eu sei que o álcool é uma droga e que ele mata um pouco o meu amigo a cada dia. Eu devo acelerar esse processo? Em condições normais eu diria que não, mas hoje, com um pouco menos de minha dignidade e de moral, entendo que sim; entendo que devo abreviar um pouco o sofrimento do homem sincero que vaga pelas ruas semi-desertas do Centro de Vila Velha às 22 horas. Melhor que ele morra logo a ter que perder um pouco de sua sinceridade e de sua dignidade a cada dia. Que ele ao menos morra com um pingo e uma pinga de dignidade.

4 comentários:

Paula Ceotto disse...

Gostei. Também estou sentindo isso na pele com essa falta de água. Sentimos isso também na pele quando sobra água nas enchentes em Vila Velha. Não tem muito como explicar, mas é próximo de uma sensação de humilhação, daí essa meia dignidade, essa meia moral.
Mas não podemos deixar que nos pisem como se fôssemos feitos para isso, como se pudessem fazer isso conosco. É muito bonito um comunicado ao povo capixaba pedindo desculpas pelos transtornos, mas isso não muda nada. Situações como essas, menos do que abaixar nossas cabeças, também nos fazem perceber os interesses e as prioridades em jogo. E por mais que às vezes não possamos mudar as coisas de imediato, nossa não indiferença mostra o quanto não aceitamos nada disso. Não aceitamos que nos pisem, que nos tornem homens de meia moral. Até porque não somos indignos; estamos indignados!

Don Quasímodo disse...

Pois é, Powah... É muito difícil manter a calma numa situação tão humilhante como essa. Privar, por dias, milhares de pessoas de água para suas necessidades mínimas é uma violência simbólica, uma dolorida agressão ao íntimo das pessoas, à dignidade delas.

Mesmo tentando reconhecer a eventualidade do problema, não há como tapar o sol com a peneira e dizer que um incidente assim é algo imprevisível em uma rede de abastecimento trintenária e sem a devida manutenção; soa até como uma piada de mal gosto.

De fato, ainda que violentados pelo Poder PÚBLICO, a melhor saída em situações de violência simbólica como essa não é baixar a cabeça, pois a nossa indiferença dá margem para que soframos novas agressões por quem deveria ser por nós. Mas é difícil... É difícil encontrar forças pra lutar após cada nova agressão à nossa dignidade, dá uma puta sensação de impotência, de que somos seres de meia dignidade.

Mas é preciso seguir, é preciso tranasformar a indiferença em indignação.

Saludos.

Anônimo disse...

"Que falta nesta cidade?… Verdade.
Que mais por sua desonra?… Honra.
Falta mais que se lhe ponha?… Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?… Negócio.
Quem causa tal perdição?… Ambição.
E no meio desta loucura?… Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura."

Faço minhas as palavras do Boca do Inferno.

Abs.

Don Quasímodo disse...

Lembrança muito pertinente, Anônimo!

Sua citação me faz pensar o quanto algumas coisas parecem nunca mudar...

Um abraço.