Trabalhar com a morte lhe fazia bem. Nunca antes havia sentido tanto prazer em um ofício, e olha que ele teve vários antes de encontrá-lo. A morte completava a sua vida.
Todos os dias era a mesma coisa. Ele passava os dias dirigindo o carro do IML sem rumo, atendendo chamados para buscar corpos sem vidas. Era como um táxi da morte. Alguns passageiros furados de balas, outros em estado de decomposição... As possibilidades eram muitas. Sentia sua vida se renovar a cada nova viagem para buscar um corpo. Era a mesma sensação há mais de um quarto de século. Sempre o mesmo frio na barriga, a mesma ansiedade. Como um juvenil em início de carreira.
Não se importava com a aparência com que tinham os mortos quando eram buscados. Nem com o cheiro. Era indiferente se pessoas choravam, gritavam, se curiosos se aglutinavam como abutres em volta e se os flashes da imprensa brilhavam como olhos apaixonados. Não deixava que ninguém atrapalhasse aquele momento seu com a morte.
Gostava de poder olhar nos olhos de seus passageiros. Vê-los com o olhar perdido de quem busca encontrar a eternidade no horizonte. Não tinha medo de fitá-los. Ao contrário. Era no olhar dos mortos que via o que o ser humano tem de mais puro. Pareciam recém-nascidos tendo os primeiros contatos com a vida. Via a fragilidade daqueles que não tinham ninguém mais por eles e pareciam clamar por misericórdia. Via a fraqueza daqueles que durante toda a vida se portaram como valentes. Alguns pareciam pedir perdão. A esses, dava seu perdão pelos males, como se fosse religiosamente investido para tal fim. Outros pareciam pedir que ele desse um último recado a alguém, que dissesse por eles algo que não foi dito por falta de tempo, medo ou coragem. A esses prometia em silêncio que cumpriria o pedido, mesmo sabendo que não o faria. Não queria que eles fossem embora com alguma preocupação ou arrependimento pendente. Sentia-se sempre o último confidente deles; a última pessoa vista por eles. Era uma honra, por certo. Daí nunca ter ido trabalhar sem que estivesse
vestido de modo respeitoso e com o bigode aparado. Ele vivia para os mortos.
Sempre fechava os olhos dos mortos antes de colocá-los para dormir no carro preto. Quando os colocava dentro do saco, sentia-se como um pai colocando o filho para dormir, principalmente quando eram as jovens vítimas do tráfico. Sabia que muitos daqueles jovens nunca tiveram pais ou uma família que lhes tivesse dado carinho. Fazia questão de garantir que ao menos na hora da morte se sentissem amados. Fazia sempre uma prece pelos indigentes. Não ria ou ouvia música enquanto
transportava os mortos. Pouco conversava com seu colega de trabalho que
lhe ajudava diariamente. Teve vários ao longo da vida. Diziam na
repartição que ele era mais frio que os corpos que transportava. O que não sabiam era que a morte o aquecia mais a cada dia, o deixava mais vivo. Era como se aqueles corpos indefesos e frágeis lhe dessem força.
Um dia, no entanto, o caronte morreu. E ninguém passou para buscá-lo.
Um comentário:
Gosto de textos que falam dessas coisas, que, a bem da verdade, não são coisa alguma. Metafísica pura.
O mérito do texto, na minha visão, é nos fazer refletir que cada um guarda em si um pouco de Caronte, pois é ela, a morte, que, no final das contas, dá sentido ao tempo e à vida.
Postar um comentário