sábado, 24 de novembro de 2018

Maria Sofia

Amanhã, na alvorada do dia, vou para meu julgamento racial. Quis o destino que o tribunal fosse no mesmo lugar onde tudo se tornou possível, atrás dos muros do local que mudou minha vida, para sempre.

Mas não é de cor, de raça (no sentido de força criativa) ou de "choro no banho" que venho falar desta vez. 

Venho falar de humildade.

Meu julgamento racial me fez pensar no quanto hoje somos tão bélicos, tão conflitantes e pouco dispostos a aceitar decisões e escolhas sem recorrer. Além do senso crescente de irresponsabilidade que torna ninguém responsável por nada, vivemos uma época em que ninguém aceita nada. E isto, muitas vezes, é fruto de um orgulho fudido que cega as pessoas e faz com que elas não tenham humildade de reconhecer que podem não estar certas.

Isto se reflete em todas as áreas.

Na Era da Informação, todo mundo se sente meio dono da razão e do conhecimento, capaz de, muitas vezes sem embasamento algum, não aceitar as decisões/opiniões daqueles que têm muito mais conhecimento sobre algo do que nós mesmos. Recorre-se até sem saber do quê, muitas vezes.

Não se respeita o conhecimento alheio. Não se aceita a opinião alheia.

Isto, a meu ver, é uma puta falta de humildade. Ser humilde não é tudo aceitar sem questionar, mas reconhecer que não temos todo o conhecimento, que estamos errados e os outros estão certos em diversas ocasiões. Óbvio que temos nossos portos seguros, aqueles assuntos dos quais somos profundo conhecedores. Porém, mesmo esses assuntos, não sabemos tudo. Precisamos estar abertos a ouvir e, principalmente, a aprender.

Quando uma pessoa perde a capacidade de ser humilde, ela perde a capacidade de aprender. E quando se perde a capacidade de aprender, se perde a capacidade de evoluir como ser humano e tornar-se melhor. Não sei se a origem da palavra "humildade" é a mesma da palavra "humano", mas penso que muito perdemos de nossa humanidade quando nos deixamos levar por um orgulho cego, por uma vaidade inconsequente e por um enganoso senso de superioridade. Ninguém perde tanto com o orgulho desmedido como nós mesmos. Ser orgulhoso nos torna fechados ao outro, nos fecha ao conhecimento que não temos, nos fecha ao mundo.

Não digo só sobre respeitar o conhecimento alheio. Digo também sobre respeitar a autonomia do outro em sua vida. Quem somos nós para avaliar o acerto ou o desacerto das decisões que as pessoas fazem em suas vidas? Claro que muitas vezes já passamos pela mesma situação e nos sentimos mais experientes e sabedores do que o outro sobre uma decisão de vida, mas as vidas são tão singulares , diferentes umas das outras, que qualquer avaliação sobre o que o outro escolheu fazer de sua vida deve trazer em si a humildade do reconhecimento de que podemos estar errados.

Uma vez, em um debate virtual com um ex-colega de escola, ele escreveu para mim, com o horrendo capslock: "ERRADO! 100% ERRADO!". Deus! Como alguém pode realmente pensar algo assim sobre qualquer coisa acima da terra e abaixo do céu? Como alguém pode ter tanta convicção sobre alguma coisa? Nem sobre nós mesmos somos capazes de ter convicções 100% certas. Quanto mais sobre temas que envolvem divergência de conhecimento.

O mundo precisa de mais humildade. Isto é uma forma de respeito ao outro. Se tudo se sabe, nada faz muito sentido em nossa existência terrena. Deve ser difícil ser Deus. O não saber move, motiva, incentiva. O mundo precisa disto. A humanidade precisa disto.

Uma vez, ao perguntar a profissão de uma pessoa para quem eu prestava meu serviço jurídico, esta pessoa me respondeu um nome de profissão bem estranho, que nem lembro ao certo. Algo do tipo "auxiliar de frios". WTF? Óbvio que perguntei a ele o que um "auxiliar de frios" fazia. Ele ficou emotivo com minha curiosidade, com meu interesse em entender uma profissão tão simples, que consiste em organizar produtos gelados nas prateleiras de supermercados. Tentei explicar para ele que todo conhecimento é válido e que o que ele sabe fazer, eu, com meus 5 anos de universidade, não tenho a menor ideia de como fazer. Tentei explicar para ele que não há hierarquia no saber e que é preciso haver respeito entre os diferentes conhecimentos. Há cerca de um mês eu sequer sabia calibrar um pneu de carro, um conhecimento simples para alguns, mas que eu dependi de um amigo para me acompanhar, me ensinar e eu aprender.

Saberes diferentes não se hierarquizam, mas se complementam e se trocam.

A vida é uma constante troca, inclusive de conhecimento. E isto torna a vida solitária algo incompatível com a essência do que é ser humano.

É preciso humildade para entender que não sabemos tudo, que há coisas que não somos capazes de resolver ou entender sozinhos e que as escolhas/decisões do outro não são passíveis de serem julgadas com certeza de acerto por nossas convicções pessoais.

A vida flui com mais tranquilidade quando se aprende a aceitar que o outro pode deter conhecimentos que não temos. A vida flui com mais tranquilidade quando se aprende que o outro pode ser aquilo que não somos.

Amanhã, aceitarei qualquer julgamento racial, sem recorrer.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Por onde andam?

Os criminosos
Que roubam, 
Mas não matam,
Que poupam o trabalhador.

Os juízes
Que sentenciam,
Mas não julgam,
Que evitam o clamor.

Os religiosos
Que ajudam,
Mas não discriminam,
Que perdoam no Senhor.

Os médicos
Que salvam,
Mas não mercantilizam,
Que curam a dor.

Os profissionais
Que trabalham,
Mas não enganam,
Que honram o labor.

Os casais
Que beijam,
Mas não postam,
Que amam com ardor.

As mãos
Que tocam,
Mas não afastam,
Que abraçam sem pudor.

As mulheres
Que transam,
Mas não ignoram,
Que acreditam no amor.

Por onde você anda?

sábado, 17 de novembro de 2018

Desconexo

São quase 3 da manhã. Mas eu estou cheio de pensamentos.

Aos 18 anos eu era um "monstro", capaz de comer uma parede de concreto para encontrar uma saída e mudar de vida. Eu parecia maduro para caramba, nada me abalava além do espírito de sobrevivência que me fazia ser capaz de morder um cachorro se isto fosse necessário para sobreviver. Eu era um guerrilheiro que só tinha em uma munição a sua chance de dar certo. Era preciso guardar bem a munição e não desperdiçar o tiro. E foi a maturidade imatura dos meus 18 anos que me salvou de hoje não estar desempregado e distribuindo currículos para ser qualquer coisa em qualquer lugar. Não que isto seja um demérito, mas é um resultado de que algo deu errado.

Quando olho para 10 anos atrás, penso no quanto eu era maduro e imaturo. Eu só queria ter uma chance de sobreviver e tudo girava em torno disto. Lembro de ter ido uma única vez a uma boate, numa matinê com 15 anos. Só Deus sabe o quanto eu tive medo de gastar aqueles 20 reais. A primeira vez que beijei uma mulher foi aos 25 anos de idade. E eu ainda perguntei se podia beijá-la. Céus! Antes disso não dava, eu estava ocupado demais em sobreviver. O que não me torna fonte de orgulho para ninguém. Aos 13, também pedi um beijo. Mas ganhei um beijo dentro do ouvido. Meio nojento. Frustrante, aliás. Saí de cena e só voltei 12 anos depois.

O coração de uma mulher é um oceano, repleto de segredos e desejos profundos e obscuros. Já a cabeça de uma mulher é um universo, repleto de possibilidades e sempre em expansão. Às vezes é difícil gostar das mulheres. Eu só queria que o encanto que vez ou outra desperto nelas durasse mais do que 2 meses. Nunca passa disto. É meio cabalístico. Talvez eu não consiga ser mais do que sou por mais de 2 meses. Esta fraqueza me dói em alguma medida. Ainda não sei o que me torna tão fugaz para as pessoas.

Não gosto que nada me escravize. Quando bebo, me sinto escravizado. Hoje não bebi. Mas fui a uma festa do caralho. Ninguém sóbrio me chamou para dançar. Eu só quero dançar no começo da festa, quando eu e todos os demais estão sóbrios, mas ninguém quer dançar. Depois que todos estão bêbados, inclusive eu, eu não quero mais dançar, me contento em ficar risonho. A bebida escraviza, mesmo quando não é vício. Escraviza porque você começa a beber sem nem saber mais ao certo porque bebe. 

Eu nunca tive nem curiosidade em usar qualquer droga. Eu só tinha uma munição a gastar para sobreviver e o vício em qualquer droga, inclusive lícita, poderia roubar meu ímpeto de sobrevivência. 

É preciso algum controle sobre o desejo, senão todo dia vira dia e não há corpo que aguente. Perder o controle sobre os desejos é a coisa mais impulsiva que alguém impulsivo pode fazer sem se dar conta de que é impulsivo. Todo dia parece ser dia de saciar o desejo. O corpo padece e a mente não percebe. Entra-se em estado de autofagia, de automutilação. É um matar-se diariamente de modo bem retardado, por sinal. Elas nos destroem aos poucos e silenciosamente. Eu precisava sobreviver. Então nunca quis.

Não gosto que nada me escravize e o desejo por algo é escravizante.

Nada com nada.

Estou desconexo.

E solitário. 

Em geral, não sou contra ser solitário. Mas às vezes é bem bad. Ter o outro obriga a gente a organizar as ideias para verbalizá-las. Não ter o outro torna nossa própria voz um monólogo. Agora que sobrevivi, eu preciso do outro. Sinto a necessidade. Uma puta fraqueza. Ou uma fraqueza puta. Nada contra as putas.

Aliás, vontade de socar cada cara puto. Por causa dos putos, somos todos canalhas. Por causa dos babacas, somos todos "machos escrotos". Por causa dos tarados, somos todos iguais. Fodam-se todos vocês. Somos todos homens, menos alguns. Dá trabalho ser homem em meio a um mundo de tanta descrença no homem.

Nunca se sabe quando tocamos de verdade o coração das pessoas. As lágrimas revelam isto no mundo material algumas vezes, mas nem sempre. E isto é bem estranho. Tocar o outro é algo que transcende o mundo material, o contato de peles e as mononucleoses das bocas vazias que beijamos nas madrugadas frias. Tocar de verdade o outro é uma sensação única. Cada coração é precioso e cercado de defesas. Quando alguém baixa a guarda, é lindo demais. Eu acho isto humano pra caralho. Mas nem sempre isto é muito claro. E isto deixa uma insegurança da porra. Deixa aquela dúvida se, no fim das contas, não se está sendo invasivo, um babaca ou um trouxa.

Mas no fim, quando se quer tocar o céu do outro, se é humano. E por mais que isto não pareça, as verdadeiras sensações humanas estão em extinção, inclusive o amor. Porque amar envolve não ser individualista e, hoje, tudo o que não queremos é ter nossas liberdades ameaçadas. Melhor a superficialidade do que é breve do que a intensidade do que permanece e é recíproco. É preciso confiar no poder da reciprocidade e baixar a guarda.

Atiro contra tudo às 3h41 desta manhã. Porque não sei o que fazer quando a preocupação maior não é mais apenas sobreviver.

sábado, 10 de novembro de 2018

Da vaidade

Tudo é vaidade.

Assim diz a Bíblia em uma de suas passagens.

Tudo é vaidade.

Hoje mais do que nunca.

Tempos de egocentrismo, de culto à própria imagem e ao próprio corpo, maximizado pelas redes sociais. Como escrevi há alguns anos, atualmente temos duas vidas: uma real e uma virtual. E a vida virtual é uma vida expositiva, na qual nos expomos e estamos 24 horas por dia acessíveis para sermos vistos e pesquisados. E isto é tentador.

As redes sociais aguçam nossa vaidade. Aos nos exporem, elas nos dão holofote, nos dão um destaque que a vida real só nos dá, em geral, em momentos de grandes feitos pessoais, em datas comemorativas ou quando fazemos alguma merda daquelas. As redes sociais alimentam nosso senso de importância, criam a sensação de que coisas insossas de nossa vida têm relevância e de que existem pessoas interessadas em saber o que andamos fazendo.

Isto pode ter um lado bom, como ajudar a desarmar a bomba depressiva daquelas pessoas que acham que sua vida não tem qualquer importância. 

Mas esta exposição e interação excessiva tem muitos lados ruins. E é isto que eu, no meu azedismo solitário, quero pontuar.

As pessoas andam cada vez mais vaidosas, interessadas em saber a repercussão que suas postagens nas redes sociais terão. Querem saber quem irá curtir suas fotos, quem irá comentar nelas. As pessoas passaram a gostar da sensação de serem visualizadas, contempladas e objeto de atenção. Todos tornaram-se artistas em alguma medida. 

O artista é um vaidoso por natureza, porque tem necessidade de ter sua arte apreciada, ainda que somente por algumas pessoas. Nem sempre quer reconhecimento ou ser compreendido, mas sempre quer ter sua arte apreciada por alguém.

Quem posta fotografias pessoais em rede social não marca a opção "postagem disponível somente para mim". Marca, na pior das hipóteses, a opção "postagem disponível somente para meus contatos". Quer ser apreciado. Se não tivesse este desejo, não postava ou, na pior das hipóteses, postava e nem olharia depois quem curtiu/comentou/interagiu com a postagem (como quem dá um tiro e sai correndo, sem nem olhar para conferir se alguém viu, foi atingido ou se algo aconteceu - o famoso "foda-se"/"caguei").

Quem posta, sente-se artista, em alguma medida. Posta por vaidade, pelo desejo de ter sua vida acompanhada por alguém (ainda que não se saiba ao certo por quem). Mas vaidade é uma merda, porque reconhecimento e protagonismo viciam. E aí, até aquela xícara fria de café ralo vira foto, postagem e objeto de curtidas e comentários. Faz bem ao ego ter seu dia apreciado por alguém, demonstra importância pessoal. É importante saber que alguém se interessa pelo o que fazemos, mas tudo que é em excesso não faz bem (nem o sexo - talvez).

A vaidade corrompe, como a fama. Perde-se um pouco o senso daquilo que realmente é merecedor de importância e de valorização. Passa-se a dar um peso anormal para o que é fugaz e superficial. A vaidade alimenta nosso egocentrismo, mexe com nossos valores. Em geral, pessoas muito vaidosas não são agradáveis, nem sequer prestam muita atenção no que dizemos, exceto quando é um elogio sobre elas mesmas. As redes sociais alimentam essa "antipatia", fortalecem nossa proximidade com aquelas pessoas que estão sempre curtindo nossas postagens, com nossos "seguidores", por exemplo. Elas alimentam nosso estímulo visual, em detrimento dos demais. Mas a riqueza da convivência humana vai muito além do que está ao alcance dos nossos olhos. Envolve coração, mas coração de verdade, e não corações virtuais de curtidas.

Cada vez mais respeito as pessoas "eremitas", que se desligam de todas as redes sociais expositivas. Eu as entendo e vejo muito sentido na escolha delas. Aliás, estou mais perto de eliminar uma rede social do que de passar a usar uma nova rede. Óbvio que as redes sociais aproximam, nos permitem acompanhar os rumos da vida de pessoas com quem não convivemos mais pessoalmente. Mas as redes sociais também afastam. Em nossa vaidade social passamos a dar valor e importância para coisas superficiais, passamos a, em alguma medida, tornar a convivência humana algo mais visual e menos pessoal, tornamos as pessoas um pouco descartáveis.

Talvez eu seja um bobo solitário, no fim das contas. 

Entendo os "eremitas". Eles não fogem das redes sociais porque fogem do contato humano. Fogem porque não aguentam mais este jogo de vaidade, no qual sua importância pode ser medida e comparada por curtidas e comentários virtuais. A vaidade pode ser escravizante, como a fama. E, para alguns, a melhor maneira de tratar isto é buscando uma vida pacata e longe de qualquer holofote. Respeito muito quem tem esta coragem de assumir que, nos fim das contas, só há uma vida digna de ser vivida: a vida real. 

Afinal, tudo é vaidade.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Dos excessos

O que seriam os excessos senão algo que só se constata depois que se concretizou? Não há presente. Há apenas passado e futuro quando o assunto é o que se excedeu. O passado é o contexto no qual a ação se concretiza e o futuro o cenário no qual se colhem as consequências que materializam o excesso.

Em geral, sabemos quando excedemos, quando vamos além daquele limite no qual as coisas ainda são boas. Nem sempre, no entanto, nós nos damos conta do quanto ultrapassamos este limite, e aí entram os outros e a Lei, por exemplo, para nos advertirem sobre isto.

Nisto consiste um dos riscos de uma vida solitária. Quando nós mesmos traçamos sozinhos por muito tempo nossa régua do que é razoável e do que é excesso, sem querer nada e nem ninguém ouvir, viramos monstros de nós mesmos. Vira autofagia. É sedutor não ouvir e nem ter que dar "satisfação" a ninguém, afinal, autonomia e liberdade são fascinantes e motivantes. Mas a vida precisa de limites mínimos bem claros e isto nem sempre nós mesmos estamos muito interessados em fixar em nossas vidas.

Quando se é jovem, a vida parece múltipla e aberta como o universo. Pensar em limites soa algo contrário à ideia do que seja viver. Aliás, viver parece algo sem validade muito certa, como algo que não deve despertar qualquer preocupação.

Aí eis que de uma vida sem limites se deixa alguém de barriga, se mata alguém em um "acidente", se contrai doenças de difícil controle e causamos injustamente dor àqueles que nos cercam ou àqueles que apenas tiveram o azar de cruzar conosco em um momento de excesso.

Exagero, né? Mas um excesso é justamente um exagero. E quando se excede, as consequências podem ser exageradas mesmo, porque se perde o controle.

Mas também existem os "pequenos" excessos, aqueles que parecem inofensivos a nós mesmos porque não deixam marcas imediatas. Por exemplo, quando não se tem qualquer horário minimamente de referência para se deixar adormecer e não se tem qualquer cuidado em dar ao corpo o devido descanso, prolongando sua vida ativa madrugadas adentro, sem perceber acabamos com nós mesmos a longo prazo. Um corpo que não possui quaisquer limites para o descanso é um corpo que tende a tornar-se débil a médio\longo prazo. "Pequenos" constantes excessos de álcool, cigarro e drogas ilícitas, por exemplo, idem.

Existem contas altas que podemos pagar só daqui a alguns anos, mas são cobradas. E o pior é que achamos que alguns excessos só fazem mal a nós mesmos e que ninguém tem que se meter no que fazemos de nossas vidas. Óbvio que não quero ninguém tendo que cuidar de mim em um leito de hospital, tendo que me dar banho, comida ou algo assim, afinal, eu sou pleno, independente e autônomo. Mas isto aos 28 anos. E aos 60 anos de uma vida marcada por "pequenos" excessos? "Ah, quero estar sozinho aos 60 anos e não dar trabalho para ninguém." E isto é escolha, quando somos seres sociais? As relações interpessoais são inevitáveis e o carinho das pessoas por nós mesmos também. Então, é bem provável que, na podridão dos 60 anos, alguém que a gente não queira dar trabalho esteja ao nosso lado querendo cuidar da gente e dividir a conta dos nossos excessos, sofrendo ao nosso lado. E a depender do nosso nível de debilidade, nem conseguiremos evitar isto. Vai ser uma merda, mas não haverá o que fazer lá na frente. Não no futuro.

Quanto pessimismo... Muito texto de tiozão chato, né?

Mas os excessos são assim. Nos deixam péssimos quando nos damos conta deles. E isto não ocorre no presente. Só no futuro.

Não é possível viver sem exceder. Aliás, a vida depende de momentos de excesso para fazer-se vida e ter sentido. Mas é possível se refletir sobre quando excedemos. Em uma de suas Cartas (não vou lembrar qual porque não decoro estas coisas) São Paulo disse que "tudo nos é permitido, mas nem tudo nos convém". E eu achei isto foda demais. Deus não criou o homem para a escravidão, e sim para a liberdade, mas nós, muitas vezes exercitamos nossa plena liberdade de modo que nos tornamos escravos de nossos atos e de nossos excessos. Precisamos exercitar melhor a parte do "nem tudo nos convém", porque a parte do "tudo nos é permitido" é bem clara.

Como dito antes, a gente sabe em alguma medida quando passamos dos limites. Ainda que com algum delay. Triste é quando não temos qualquer noção do quanto estamos vivendo inconsequentemente e precisamos ser lembrados por alguma merda que acontece. Às vezes precisamos que alguém "chame nosso feito à ordem", opine sobre nossos rumos. Nenhuma grande empreitada pode ser planejada/executada com êxito em completa solidão. Assim como também nenhuma empreitada alcança êxito quando não temos disciplina de dizer "não" aos excessos. Costumo dizer que sou um cara fácil: só chamar que eu vou. Adoro gente e convite para fazer coisas. Mas tem horas que ir, ir de novo, de novo e de novo, torna-se excesso. É preciso encontrar a medida, o limite.

Para tudo existem limites. Até a vida necessita do limite imposto pela morte para se completar. E a morte, a depender do que você acreditar, também encontra limite. Nada é pleno, nem meus 28 anos.

Uma vida de completa ausência de controle sobre os excessos não produz muita coisa. Aliás, os excessos raramente nos permitem chegar sem atrasos ao lugar que teríamos condições de chegar antes. É como chuva em excesso na estrada. O excesso de chuva atrasa nossa viagem e, por vezes, não nos permite chegar. Assim são os excessos. 

É preciso cuidado, reflexão e senso de responsabilidade consigo mesmo. Sermos livres e autônomos não significa fazermos "vista grossa" de nossos desvios. Precisamos cuidar melhor de nossas vidas, de nossa saúde e de nossos sentimentos. É preciso verdadeiro amor próprio para deixarmos de nos auto-sabotar, deixar de nos devorarmos por nossos próprios excessos. É preciso verdadeira disciplina e verdadeiro empenho em se controlar, reorganizar-se e seguir viagem. Temos muito a fazer e a viver, em verdadeira liberdade.