sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Transe

Foi, sem sombra de dúvidas, uma das sensações mais estranhas que já senti. Eu não sentia minhas pernas, apesar do fato de que eu estava andando no meio da rua naquele exato momento. Na verdade, eu não andava, eram elas que iam me puxando. Por alguns segundos eu percebi que eu sabia para onde ia, mas que eu não estava indo voluntariamente. Elas me puxavam. Ali, naquele momento, no meio dos carros e de toda a agitação da Enseada do Suá, eu percebi que eu DESPERTEI. Percebi a agonia de minhas pernas; percebi que elas pareciam ter desistido de mim em algum momento, pareciam ter percebido que eu estava em transe e que não cabia a elas nada além de me levar aos lugares de sempre; elas pareciam cansadas e sem forças para lutar contra o transe.

Enfim, eu acordara de uma hipnose que durava desde abril. Três anos antes eu já havia sido hipnotizado, mas o desespero para entrar na UFES era tão grande que eu nem sei ao certo se realmente eu estive hipnotizado. Sem perceber eu fui hipnotizado pela bela sirena, eu não dei ouvidos ao Ulisses e não coloquei cera em meus ouvidos, ou melhor, em meus olhos para não vê-la. Também não me amarrei ao mastro para resistir, eu me entreguei por vontade própria ao canto dela.

Desde abril, aquele estado de delírio que ia e vinha com pouca frequência há três anos tornou-se diário. Eu via o rosto dela em todos os lugares; escutava a voz dela por toda parte; ela estava em todo canto. Na verdade, ela não estava. Eu via onde não havia; eu imaginava o que não existia; eu figurava lugares onde a levaria; pessoas a quem a apresentaria; noites frias em que com ela estaria. Eu tinha sem ter. O pior, senhoras e senhores, era que eu realmente acreditava nisso tudo... Por 4 longos meses eu tive crises diária desse jeito. Imagino agora o desespero de minhas pernas ao ver que só elas restavam sãs nesse corpo em transe.

Mas eu acordei, acordei graças à monotonia, ao comum de cada dia. Acordei ao me deparar com um dia comum, um dia parecido (nunca igual) com os outros, no qual eu pude ver que aquele era o real, não havia aquela dimensão que eu imaginei existir por 4 meses enquanto eu fazia o de sempre sem perceber. Eu vivia como aquela pessoa que não tem o que comer e morde o prato imaginando que ali tem uma suculenta coxa de frango. Eu mastigava pedra pensando que comia algo sofisticado. Acordei quando cuspi um dente pra fora. O comum me chamou de volta. Mas não foi tão rápido quanto parece.

Precisei ter um grande azar para perceber que era sorte. Pensando numa luta de boxe, esse episódio de azar que foi de sorte, foi como um direto no meio do meu nariz no começo da luta, um golpe num momento que eu nem me defendia por não achar que precisava. Acusei o golpe. Passei o resto do 1º Assalto (acho mais legal do que round) me segurando nas cordas, até esbocei sair para a luta, mas o gongo soou e fui para o corner. Quando já começava a administrar a dor do soco inesperado, recebo logo mais um no meio da nuca. Ei! Isso não vale, seu juiz, é antidesportivo. Ele fingiu não ver e abriu contagem para mim. Eu ouvia o som da música, percebia, caído ali na lona, que eu fui enganado por mim mesmo, que achei que aguentava entrar naquela luta. A música tocava bem alto, parecia que era para eu ouvir com bastante atenção e entender tudo. Percebi que ninguém dava atenção para a minha agonia no chão, todos pareciam apenas esperar eu admitir logo que não iria continuar na luta, um resultado esperado. Foi nesse dia, quando recebi o segundo golpe, que percebi as minhas pernas perdidas pelas ruas. Foi nesse dia que o comum me chamou de volta ao real. Naqueles segundos em que estive caído no chão sentindo aquela dor silenciosa do 2º golpe, percebi o quanto eu havia me enganado, o quanto eu havia delirado. Mas eu levantei, eu queria acabar a luta em pé (como diria Reginaldo: se é para morrer, que morra em pé!). Voltei à luta, grogue pelos golpes, tudo parecia rodar um pouco, mas eu ainda ouvia a música tocando; então eis que soa o gongo e eu volto para o meu corner pensando que havia, enfim, acordado.

Tarde demais. Apenas ganhei um ar extra, aquele para me levar de volta ao ringue para apanhar mais. Quem ficou até o fim ainda viu um 3º golpe de despedida, daqueles bem vorazes. Fui à lona, enfim. Senti o gosto da derrota, aquele que deixa a boca seca, que tira a voz, mas que te faz acordar de vez, te faz perceber que você errou em algum momento. Eu errei quando deixei, voluntariamente, a sirena me encantar novamente.

O que importa é que nesta semana eu saí do transe (eu acho), o monótono me chamou de volta ao real. Digo às minhas pernas que não têm mais o que temer, eu as guiarei novamente.

2 comentários:

Anônimo disse...

Adorei o texto ! Afinal, já passei por isso... Bom final de semana !!!

Don Quasímodo disse...

Obrigado pelo elogio! Eu escrevi esse texto quase como um desabafo conclusivo, uma exaltação da derrota que me acordou, sem pretensões de qualidade.

É legal saber que esse estado de transe não é tão incomum quanto eu pensei. Para falar a verdade, acho que muita gente deve estar nesse estado por aí, por variados motivos.

Bom fim de semana para você também! Volte mais vezes!